O Estado tem grandes ideias
A ideia de que a família é a célula da sociedade não me incomoda (embora não concorde com ela), nem acho assunto para discussão. A ideia de que as famílias numerosas é que são famílias, porém, tomou conta do pensamento dominante na propaganda sobre fiscalidade e segurança social. Em linhas gerais, o Estado tomou a seu cargo a definição da família numerosa como família financiável e premiável. O Estado festeja-a, finalmente, e indica aos prevaricadores, que têm menos filhos, ou por algum motivo não os têm, o caminho justo, generoso e também católico, de reprodução para benefício da comunidade.
Os ideólogos da segurança social e da demografia olham a sociedade e exigem, como o profeta: ide e multiplicai-vos. E acrescentam: disso depende a segurança social e, bem entendido, a nossa sobrevivência demográfica. Este desejo é francamente inspirador e, vamos lá, devia deixar-nos inquietos - e corados de vergonha. O Estado pode olhar para os seus cidadãos e repreendê-los porque eles não trabalham o suficiente, porque eles abusam do álcool ou do excesso de velocidade nas estradas. Mas, em boa verdade, não pode punir (fiscalmente) aqueles que não se reproduzem convenientemente, taxando-os de forma mais pesada e com um tom claramente repressivo.
Não porque seja ilegal o facto de o Estado premiar quem tem uma actividade sexual mais activa ou quem não usa anticoncepcionais. No momento que vivemos, esse incentivo à sexualidade conjugal é sempre bem-vindo. Andamos tristes e, com o Verão à porta, quem sabe se o país não desata, com mais afinco, a dedicar-se a práticas sexuais que o livrem do medo do amanhã. É criticável, claro, mas pode fazê-lo.
Mas é preciso, entretanto, alertar os cidadãos para esta armadilha: o Estado não quer que as pessoas façam sexo, atenção; o Estado quer mão-de-obra, população, contribuintes, eleitores, carne para canhão. Quem quiser, dá - quem não quiser, não pode ser acusado de falta de patriotismo. O eng.° Gu-terres, ainda enquanto candidato a primeiro-ministro, já se queixava amargamente da falta de reprodução nacional e usou o tema como argumento eleitoral, daí se inferindo que os portugueses não se entregavam às alegrias da procriação porque o cavaquismo os tinha deprimido ou lhes tinha provocado alguma das disfunções do costume.
Ora, o Estado não quer cidadãos distraídos desse objectivo disciplinador que, finalmente, concilia anos de pregação moral e católica com os desejos de qualquer política demográfica de um regime socialista à antiga (excepto" na China porque, como se sabe, a China anda ao contrário).
Pessoalmente, compreendo a felicidade dos progenitores de uma família numerosa: quatro, seis, oito, 12 filhos reunidos à mesa, encaminhando-se para a escola, dormindo em camaratas e incomodando as pessoas na praia. É a vingança contra Herodes. O Estado premeia essa felicidade - punindo fiscalmente quem não vê grande alegria na reprodução, quem não quer ter senão um filho, ou, simplesmente, quem não quer ou não pode ter filhos.
Este discurso fiscal do Estado acaba por encaixar na crítica aos europeus que, egoístas, se recusam a transformar os seus apartamentos em velhas casas de família, cheias de crianças que daí a uns anos vão contribuir para a Segurança Social.
É evidente que há um problema demográfico sério. Mas pensar que as pessoas vão ter filhos quando a vida está como está, quando a vida é como é, como os impostos estão como estão, já me parece um excesso de optimismo.
in Jornal de Notícias – 1 de Maio 2006
Os ideólogos da segurança social e da demografia olham a sociedade e exigem, como o profeta: ide e multiplicai-vos. E acrescentam: disso depende a segurança social e, bem entendido, a nossa sobrevivência demográfica. Este desejo é francamente inspirador e, vamos lá, devia deixar-nos inquietos - e corados de vergonha. O Estado pode olhar para os seus cidadãos e repreendê-los porque eles não trabalham o suficiente, porque eles abusam do álcool ou do excesso de velocidade nas estradas. Mas, em boa verdade, não pode punir (fiscalmente) aqueles que não se reproduzem convenientemente, taxando-os de forma mais pesada e com um tom claramente repressivo.
Não porque seja ilegal o facto de o Estado premiar quem tem uma actividade sexual mais activa ou quem não usa anticoncepcionais. No momento que vivemos, esse incentivo à sexualidade conjugal é sempre bem-vindo. Andamos tristes e, com o Verão à porta, quem sabe se o país não desata, com mais afinco, a dedicar-se a práticas sexuais que o livrem do medo do amanhã. É criticável, claro, mas pode fazê-lo.
Mas é preciso, entretanto, alertar os cidadãos para esta armadilha: o Estado não quer que as pessoas façam sexo, atenção; o Estado quer mão-de-obra, população, contribuintes, eleitores, carne para canhão. Quem quiser, dá - quem não quiser, não pode ser acusado de falta de patriotismo. O eng.° Gu-terres, ainda enquanto candidato a primeiro-ministro, já se queixava amargamente da falta de reprodução nacional e usou o tema como argumento eleitoral, daí se inferindo que os portugueses não se entregavam às alegrias da procriação porque o cavaquismo os tinha deprimido ou lhes tinha provocado alguma das disfunções do costume.
Ora, o Estado não quer cidadãos distraídos desse objectivo disciplinador que, finalmente, concilia anos de pregação moral e católica com os desejos de qualquer política demográfica de um regime socialista à antiga (excepto" na China porque, como se sabe, a China anda ao contrário).
Pessoalmente, compreendo a felicidade dos progenitores de uma família numerosa: quatro, seis, oito, 12 filhos reunidos à mesa, encaminhando-se para a escola, dormindo em camaratas e incomodando as pessoas na praia. É a vingança contra Herodes. O Estado premeia essa felicidade - punindo fiscalmente quem não vê grande alegria na reprodução, quem não quer ter senão um filho, ou, simplesmente, quem não quer ou não pode ter filhos.
Este discurso fiscal do Estado acaba por encaixar na crítica aos europeus que, egoístas, se recusam a transformar os seus apartamentos em velhas casas de família, cheias de crianças que daí a uns anos vão contribuir para a Segurança Social.
É evidente que há um problema demográfico sério. Mas pensar que as pessoas vão ter filhos quando a vida está como está, quando a vida é como é, como os impostos estão como estão, já me parece um excesso de optimismo.
in Jornal de Notícias – 1 de Maio 2006
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