maio 22, 2006

O estranho código deste tempo

Eu li "O código Da Vinci". Acho que aquele dr. Robert Langdon é um embuste como cavalheiro; do princípio ao fim do livro entretém-se em matérias de criptologia, história das religiões, teologia e outros mistérios da cristologia, sem tocar na jovem francesa que o acompanha na sua aventura. Pode ser bom para a investigação do livro mas é mau para o romance. Um romance tem de ter essas coisas. O "Código Da Vinci" não tem.

Também li "Anjos e demónios", um "thriller" passado entre a Suíça e o Vaticano com uma eleição do Papa pelo meio. Gostei mais do ponto de vista da acção, mas Dan Brown já era assexuado nesta altura (o livro é anterior ao "Código"), o que o confirma como um poeta (ah, não sabia?) fascinado com o Renascimento italiano e com o mais puro platonismo nessa matéria. Os poemas de Dan Brown são contemplativos, falam de Michelangelo, da sombra do tempo - os romances não; são construções cheias de piscadelas de olho às perturbações dos que nasceram no interior do cristianismo e se deixam enredar em mistérios e conspirações.

A princípio, a polémica era apenas literária. Os jornais fizeram inquéritos a escritores e intelectuais de nomeada, querendo saber se tinham lido ou iam ler o "Código Da Vinci". A maior parte disse que não leu nem ia ler. Fazem mal. A arrogância e a ignorância andam juntas. Depois, a polémica passou para o lado dos historiadores. Os historiadores andam mais soltos e interessantes do que os escritores - alguns já lêem bastante e não fazem escândalo quando um romancista obscuro se lhes atravessa no caminho. Distinguem romance e história, estabelecem fronteiras, mas não se fazem de virgens ofendidas.

Mas "O código Da Vinci" percorreu outro caminho. Não propriamente o da adivinhação, mas o da conspiração, o da interpretação, o de desvario. A Igreja Católica sentiu-se atingida por um romance planetário que assenta muito na leitura dos Evangelhos Agnósticos e da tradição esotérica ligada à história do Graal, dos Templários e dos mistérios conexos. Além do mais, um dos personagens é membro do Opus Dei, uma organização privilegiada dentro da Igreja - com as suas regras, os seus objectivos, a sua história e os seus aspectos criticáveis. Mas a Igreja não gosta que se brinque com os seus mistérios e está no seu direito. Na Bielorrússia, o filme foi interditado porque os fiéis não gostavam. Numa terreola perto de Roma, as autoridades queimaram exemplares do livro. A igreja chinesa, sempre tão caladinha, levantou a voz pedindo para o livro ser proibido - o que é fácil acontecer na China. Um cardeal, através da Rádio Vaticano, pediu aos fiéis para não comprarem "nem lerem" o livro. Uma interessante associação de albinos, em Nova Iorque, diz-se atingida e humilhada pelo livro (o "monge" do Opus Dei é albino). Uma sociedade americana para a defesa da família elaborou um conjunto de regras "para o bom manifestante contra o Código". Nas Filipinas, o filme foi classificado "para maiores de 18 anos". Na Grécia, os tribunais foram apedrejados por se terem negado a proibir o filme. Um cardeal diz que o estilo do livro "saiu da máfia", e pediu que seja "ensinado ao seu autor" a distinguir entre verdade e mentira. Imagino como o cardeal o "ensinaria" há 200 anos.

Finalmente, para pôr as coisas em pratos limpos, o presidente do Conselho Pontifício para a Cultura, acusa o romance de "confundir realidade com ficção". Nada mais fascinante. É isso que se quer de um romance. Esta semana vou ver o filme e aconselho toda a gente a fazê-lo. A Igreja Católica, que está ocupada em pedir proibições, devia preocupar-se em recuperar os seus fiéis. Em falar-lhes na língua da religião. Durante séculos, aliás, a Igreja também não queria que se lesse a Bíblia. Tem uma larga tradição de livros queimados.

Jornal de Notícias - 22 Maio 2006