maio 03, 2006

Europa, Antuérpia

Não sei se leram Dentes Bran­cos, de Zadíe Smith (edição da Dom Quixote), mas aviso que vale a pena. Zadie é uma jovem escritora bri­tânica (aliás belíssima) filha de pai in­glês e de mãe jamaicana e recentemen­te publicou um dos livros mais belos da temporada, On Beauty. Em Dentes Brancos Londres aparece em todo o es­plendor — um mundo extraordinário composto de paquistaneses ou de emi­grantes ilegais do Bangladesh, teste­munhas de Jeová, judeus, muçulmanos fundamentalistas, cristãos maronitas, chineses, latino-americanos, tunisinos, tudo o que imaginarem. Londres é, por­tanto, uma cidade europeia.

Essa decomposição em mosaico vi­vo, que se recolhe agora com mais facilidade nas ruas das grandes cidades, não é nova. Ela existiu sempre nas ruas da nossa Europa. Por isso lembro-me de Antuérpia, uma das cidades que, desde o século XIII, pelo menos, está ligada a Portugal por laços de comércio, estra­tégia política e interesse cultural. Eu lembro-me de Antuérpia quando se fala da Europa. Lembro-me de Antuérpia quando se fala das portas da Europa abertas ao mundo. Lembro-me de An­tuérpia quando se menciona a liberda­de. E a liberdade é o nosso mundo euro­peu - o mundo das viagens, da mobili­dade, daquilo que nos mostra o rosto diferente de nós mesmos. É, por isso, uma das minhas cidades, o outro lado do outro hemisfério de que gosto de falar — o outro lado do mundo que fica para lá de qualquer linha do horizonte. Judeus fugidos à Inquisição ibérica ou apenas católica, muçulmanos que bus­cavam ilustração fora do Califado, cris­tãos perseguidos pela Contra-Reforma, comerciantes cheios de imaginação, criadores de arte e de filosofia, Antuér­pia recebeu-os a todos. Os historiadores dizem que havia dinheiro por detrás da face de refúgio humanitário, mas esse é apenas um pormenor. Há preços que não têm preço.

Nas ruas de Antuérpia, que recor­do agora à distância, vejo esse mundo através dos seus portais, das suas pedras negras ou humedecidas pela chuva. Uma sinagoga que já foi clandestina, uma escola escondida, uma biblioteca, um pátio. A Europa é também isso: refúgio, luz no meio da escuridão, porto de abrigo. E é essa uma das suas marca essenciais, mesmo quando estou sentado num dos bares das ruas da velha judiaria e vejo passar bandos de raparigas a caminho do porto, homens de turbante encaminhando-se para a velha universidade que atravessou a Idade Média, velhos passeando pelas ruas onde o nosso Damião de Góis encontrava um mundo que lhe tinha sido proibido conhecer em Lisboa (e que o levaria prisão e à morte misteriosa, na verdade). Esta tranquilidade comove-me sempre.

Fico alojado num hotel perto da estacão. Na sala de entrada, dois paquistaneses aguardam o comboio da manhã para Amesterdão, e uma mulher lê um livro escrito em cirílico. A janela do meu quarto dá para a grande praça diante da estação. Parece-me a minha Europa. A do inter-rail. A das viagens entre cidades que acordam a qualquer hora do dia, recebendo visitantes inesperados desconhecidos. Eu também irei para Amesterdão no dia seguinte, depois de passar pela universidade, onde vou procurar um livro que se perdeu nos nossos arquivos. Depois da universidade, irei a um restaurante de velhos amigos que servirão, a abrir, o melhor falafel de Antuérpia. Ao pequeno-almoço, alguém lê El Pais na sala do restaurante do hotel.

Estou no centro do mundo sem o saber. No centro da Europa, em Antuérpia Gracia Nasi, que fugiu da Inquisição portuguesa, há quinhentos anos, acaba de passar pela rua à minha frente. Vai para Constantinopla. Vai para todo o lado, como uma europeia.

in Outro hemisfério – Revista Volta ao Mundo – Maio 2006