Barca Velha
«É mais difícil ir ao Meão do que a Luanda», diz Nicolau de Almeida neste livro belíssimo de Ana Sofia Fonseca. Eu compreendo-o bem. Nasci muito perto do Meão, alias da Quinta do Vale Meão, referência completa no mapa da região. Vivi no Pocinho os dias mais felizes da minha infância — ali, onde se colhiam as uvas e se preparava o Barca Velha, e onde era mais difícil chegar do que a Luanda. Compreendo bem o lamento. Ainda hoje é difícil chegar por estrada a esse ponto do mapa onde o calor de Agosto é mais do que uma ameaça: nuvens de poeira e nuvens de calor confundem-se, os termómetros ultrapassam com frequência os 40 graus centígrados, o ruído das cigarras é mais ensurdecedor do que nos romances que falavam do assunto, a noite chega como uma promessa de alívio. Nessa hora logo depois do crepúsculo esperava-se que a brisa que envolvia a aldeia passasse pelo leito do rio antes de subir para as colinas. Era, repito, a única promessa de alívio - a menos que surgissem sob os picos dos montes (na Lousa, em Sto. Amaro, para os lados das Mós, vindas de Numão) umas nuvens que sugeriam chuva.
Mais tarde, quando aprendi o significado exacto da expressão «chuva tropical», lembrei-me do Pocinho, lembrei-me da Quinta do Campo submersa nessa neblina azulada que se confundia com a curva do rio, diante da Quinta do Reguengo, lembrei-me da planície inclinada de vinhas da Quinta do Vale Meão, lembrei-me dos vultos dos pequenos barcos de pescadores fluviais sob a velha ponte de ferro por onde passava um comboio alegre e saltitante a caminho de Miranda do Douro, preparando-se para subir por entre falésias, reentrâncias, sombras, tufos de mato, ate Moncorvo.
As minhas memórias do vinho do Douro têm a ver com esse cenário. Não é por acaso que ele aparece logo a abrir o livro de Ana Sofia Fonseca. O vinho do Douro sempre me pareceu um milagre. O aroma de mosto cruzando os ares em meados e finais de Setembro, misturado com os últimos tons vivos das amendoeiras, com os picos cobertos de zimbro, com o ruído dos comboios que circulavam entre a Barca d'Alva e o Porto. E havia aquela música ininteligível, certamente: a das vindimas, a dos trabalhos no socalco, iluminada pela luz fantástica do Douro, entrando pelos pomares, pelas hortas, pelos olivais e amendoais, atravessando a sombra dos choupos, os juncos à beira da água.
O Douro, por isso tudo, é um rio habituado a ver milagres. Se não existe uma explicação racional, sociológica, histórica, económica, eu encontro essa - que me serve perfeitamente: trata-se de um milagre. Certamente que a história do vinho do Douro, e a do Vinho do Porto muito mais, explica-se por dinastias de gente atrevida que experimentou, inventou e recriou sabedorias ancestrais até conseguir a bebida que vem em todos os grandes poetas desde a Antiguidade, exagerada pelo êxtase.
Para quem viaja ao longo do Douro no velho comboio — que hoje parece condenado ao desaparecimento - essa historia de milagres parece uma coisa romântica. De certo modo, é. As quintas estacionadas a meio das colinas, os ancoradouros presos às falésias, as pequenas baías em lugares insuspeitos, ribeiros que desaguam de repente (vindos da Beira - de um lado - ou de Trás-os-Montes - do outro), pontes que atravessaram o século para que nos habituássemos à sua imagem, tudo isso esta povoado de uma mitologia particular, que é romântica, e, ao mesmo tempo, de uma história de sofrimentos. Só assim se compreende a humaníssima natureza daqueles socalcos talhados a mão, inclinados sobre o rio.
A quem escreve sobre vinhos, sobre os seus sabores, sobre o carácter delituoso do vinho, eu recomendo sempre uma viagem ao longo do Douro. Quando mais não seja para confirmar a justeza dessa frase que o leitor encontrará daqui a algumas paginas: «É mais difícil ir ao Meão do que a Luanda.» James Murphy, um interessante inglês que viajou por Portugal no século XVIII (e publicou mesmo as suas impressões num Travels in Portugal), escreveu que «um português pode fretar um navio para o Brasil com menos dificuldade do que Ihe é preciso para ir a cavalo de Lisboa ao Porto». Imaginem-se agora as dificuldades quase intransponíveis que se Ihe ofereciam para ir ao Meão.
Não foi por isso que os ingleses deixaram de se interessar pelo Douro e que, alguns, como o lendário Barão de Forrester, se fixaram nas margens do rio dos milagres. Eu chamo-lhe rio dos milagres a esse rio que engoliu o Barão no cachão da Valeira - e tenho algumas razões. Uma delas tem a ver com o vinho. O poeta Ibris ben-al-Yaman, que viveu no Al-Andaluz do século XI, associou o vinho à arte de voar - os corpos cheios de vinho estariam, afinal, cheios de espíritos. O Douro favorece esse contacto entre os homens e os espíritos: a doçura contagiante do seu vinho é calorosa e romântica, para dar razão a um dos meus grandes autores, Arquíloco, que - a propósito do vinho, da sua prova - falava de «um raio a deflagrar no espírito». Um vinho prodigioso como o do Douro, rescendendo a tudo o que a terra inventou para nos separar do que é acessório, merece que invoquemos os clássicos, muito mais do que as lengalengas dos académicos que visitam as adegas com o compêndio atado à cintura. Por isso é quase brutal a visita que Ana Sofia Fonseca faz junto deste nome: Nicolau de Almeida - um mago cujo inimitável trabalho merece distinção e prémio.
Nenhuma filoxera poderia fazer esquecer o seu trabalho e a sua criação. É certo que (e isto é a minha opinião de regionalista) o Douro favorece a sua competência olfactiva. O rio dos milagres transporta todos os frutos e todos os aromas. Eu acrescentaria isso ao que Ana Sofia Fonseca refere como a tríade de competências necessárias a um enólogo de excepção, um dos nossos génios, como Soares Franco: «Amor pelo ofício; nariz sensível, dom ganho à nascença e intimamente relacionado com a condição física e intelectual de cada um e, por fim, um bom mestre.»
O Barca Velha faz parte daquilo que o Douro não pode dispensar. Mais do que isso: é uma das glórias do Douro, só possível com essa contribuição de homens como os Nicolau de Almeida, os Soares Franco - a eles devemos a construção de uma mitologia danada, inscrita nas águas do rio dos milagres e nas tentações de quem ama verdadeiramente o seu ofício. É certo que cada papila procura a sua salvação num vinho diferente do outro — mas o Barca Velha, com o seu rasto de afrontas ao país pequenino e vulgar (ultrapassando-o, humilhando-o, e à sua mediocridade), é obra de génio. A vasta literatura sobre a idade madura dos vinhos Portugueses nunca ficaria completa sem o tributo a prestar aos vinhos do Meão, aos velhos e aos novos.
De cada vez que visito a minha terra, de cada vez que desço aquela estrada de Foz Côa (onde, de facto, nasci) para o Pocinho de todas as minhas infâncias, procuro identificar as vinhas. O rio já é outro. Já não é o imenso espelho rodeando a curva das Frieiras, junto às Cortes - uma barragem interrompeu-lhe o curso, moderando a corrente, para cá do Meão. Muitas vezes ia a pé entre o Pocinho e as correntes de Almendra e Castelo Melhor e apreciava essas vinhas. Sempre me pareceu que se desprendia, dali, um aroma que antecipava o «raio a deflagrar no espírito» que se lê em Arquíloco. O rio já não recebe, nas suas margens, as sombras salvadoras dos choupos e das oliveiras do Pocinho, dos seus pomares magníficos, avantajados - apenas o calor imenso, o calor que entorpece, o ruído das cigarras nas colinas. Ana Sofia Fonseca presta uma inestimável homenagem à minha terra e ao rio dos milagres falando de um vinho que se devia associar à nossa cultura mais profunda e mais erudita. O Barca Velha é um trabalho de erudição, evidentemente. Dispensando os sufrágios das academias, ele entra nos nossos dicionários como sinónimo de poesia «os vinhos odoríferos», de que falava Camões, mas também os vinhos com «mais alma que muito poema ou livro santo», como escrevia Eça, da mais intensa, da mais inesquecível. Na sua história está a história de uma paixão pelo vinho e de uma obra de cultura.
Diz-se, na tradição bíblica, que Noé se dedicou a plantar vinhas depois de ter sobrevivido ao dilúvio. Os vários dilúvios do Douro, certamente divinos, por serem tão intensos e tão inesperados, não interromperam essa alquimia que tornou possível o Barca Velha. A nossa alma tem enorme divida de gratidão para com os seus criadores.
Prefácio ao livro “Barca Velha – Histórias de um vinho” de Ana Sofia Fonseca, Ed. Dom Quixote (Colecção Cadernos de Reportagem), Lisboa, 2004
Mais tarde, quando aprendi o significado exacto da expressão «chuva tropical», lembrei-me do Pocinho, lembrei-me da Quinta do Campo submersa nessa neblina azulada que se confundia com a curva do rio, diante da Quinta do Reguengo, lembrei-me da planície inclinada de vinhas da Quinta do Vale Meão, lembrei-me dos vultos dos pequenos barcos de pescadores fluviais sob a velha ponte de ferro por onde passava um comboio alegre e saltitante a caminho de Miranda do Douro, preparando-se para subir por entre falésias, reentrâncias, sombras, tufos de mato, ate Moncorvo.
As minhas memórias do vinho do Douro têm a ver com esse cenário. Não é por acaso que ele aparece logo a abrir o livro de Ana Sofia Fonseca. O vinho do Douro sempre me pareceu um milagre. O aroma de mosto cruzando os ares em meados e finais de Setembro, misturado com os últimos tons vivos das amendoeiras, com os picos cobertos de zimbro, com o ruído dos comboios que circulavam entre a Barca d'Alva e o Porto. E havia aquela música ininteligível, certamente: a das vindimas, a dos trabalhos no socalco, iluminada pela luz fantástica do Douro, entrando pelos pomares, pelas hortas, pelos olivais e amendoais, atravessando a sombra dos choupos, os juncos à beira da água.
O Douro, por isso tudo, é um rio habituado a ver milagres. Se não existe uma explicação racional, sociológica, histórica, económica, eu encontro essa - que me serve perfeitamente: trata-se de um milagre. Certamente que a história do vinho do Douro, e a do Vinho do Porto muito mais, explica-se por dinastias de gente atrevida que experimentou, inventou e recriou sabedorias ancestrais até conseguir a bebida que vem em todos os grandes poetas desde a Antiguidade, exagerada pelo êxtase.
Para quem viaja ao longo do Douro no velho comboio — que hoje parece condenado ao desaparecimento - essa historia de milagres parece uma coisa romântica. De certo modo, é. As quintas estacionadas a meio das colinas, os ancoradouros presos às falésias, as pequenas baías em lugares insuspeitos, ribeiros que desaguam de repente (vindos da Beira - de um lado - ou de Trás-os-Montes - do outro), pontes que atravessaram o século para que nos habituássemos à sua imagem, tudo isso esta povoado de uma mitologia particular, que é romântica, e, ao mesmo tempo, de uma história de sofrimentos. Só assim se compreende a humaníssima natureza daqueles socalcos talhados a mão, inclinados sobre o rio.
A quem escreve sobre vinhos, sobre os seus sabores, sobre o carácter delituoso do vinho, eu recomendo sempre uma viagem ao longo do Douro. Quando mais não seja para confirmar a justeza dessa frase que o leitor encontrará daqui a algumas paginas: «É mais difícil ir ao Meão do que a Luanda.» James Murphy, um interessante inglês que viajou por Portugal no século XVIII (e publicou mesmo as suas impressões num Travels in Portugal), escreveu que «um português pode fretar um navio para o Brasil com menos dificuldade do que Ihe é preciso para ir a cavalo de Lisboa ao Porto». Imaginem-se agora as dificuldades quase intransponíveis que se Ihe ofereciam para ir ao Meão.
Não foi por isso que os ingleses deixaram de se interessar pelo Douro e que, alguns, como o lendário Barão de Forrester, se fixaram nas margens do rio dos milagres. Eu chamo-lhe rio dos milagres a esse rio que engoliu o Barão no cachão da Valeira - e tenho algumas razões. Uma delas tem a ver com o vinho. O poeta Ibris ben-al-Yaman, que viveu no Al-Andaluz do século XI, associou o vinho à arte de voar - os corpos cheios de vinho estariam, afinal, cheios de espíritos. O Douro favorece esse contacto entre os homens e os espíritos: a doçura contagiante do seu vinho é calorosa e romântica, para dar razão a um dos meus grandes autores, Arquíloco, que - a propósito do vinho, da sua prova - falava de «um raio a deflagrar no espírito». Um vinho prodigioso como o do Douro, rescendendo a tudo o que a terra inventou para nos separar do que é acessório, merece que invoquemos os clássicos, muito mais do que as lengalengas dos académicos que visitam as adegas com o compêndio atado à cintura. Por isso é quase brutal a visita que Ana Sofia Fonseca faz junto deste nome: Nicolau de Almeida - um mago cujo inimitável trabalho merece distinção e prémio.
Nenhuma filoxera poderia fazer esquecer o seu trabalho e a sua criação. É certo que (e isto é a minha opinião de regionalista) o Douro favorece a sua competência olfactiva. O rio dos milagres transporta todos os frutos e todos os aromas. Eu acrescentaria isso ao que Ana Sofia Fonseca refere como a tríade de competências necessárias a um enólogo de excepção, um dos nossos génios, como Soares Franco: «Amor pelo ofício; nariz sensível, dom ganho à nascença e intimamente relacionado com a condição física e intelectual de cada um e, por fim, um bom mestre.»
O Barca Velha faz parte daquilo que o Douro não pode dispensar. Mais do que isso: é uma das glórias do Douro, só possível com essa contribuição de homens como os Nicolau de Almeida, os Soares Franco - a eles devemos a construção de uma mitologia danada, inscrita nas águas do rio dos milagres e nas tentações de quem ama verdadeiramente o seu ofício. É certo que cada papila procura a sua salvação num vinho diferente do outro — mas o Barca Velha, com o seu rasto de afrontas ao país pequenino e vulgar (ultrapassando-o, humilhando-o, e à sua mediocridade), é obra de génio. A vasta literatura sobre a idade madura dos vinhos Portugueses nunca ficaria completa sem o tributo a prestar aos vinhos do Meão, aos velhos e aos novos.
De cada vez que visito a minha terra, de cada vez que desço aquela estrada de Foz Côa (onde, de facto, nasci) para o Pocinho de todas as minhas infâncias, procuro identificar as vinhas. O rio já é outro. Já não é o imenso espelho rodeando a curva das Frieiras, junto às Cortes - uma barragem interrompeu-lhe o curso, moderando a corrente, para cá do Meão. Muitas vezes ia a pé entre o Pocinho e as correntes de Almendra e Castelo Melhor e apreciava essas vinhas. Sempre me pareceu que se desprendia, dali, um aroma que antecipava o «raio a deflagrar no espírito» que se lê em Arquíloco. O rio já não recebe, nas suas margens, as sombras salvadoras dos choupos e das oliveiras do Pocinho, dos seus pomares magníficos, avantajados - apenas o calor imenso, o calor que entorpece, o ruído das cigarras nas colinas. Ana Sofia Fonseca presta uma inestimável homenagem à minha terra e ao rio dos milagres falando de um vinho que se devia associar à nossa cultura mais profunda e mais erudita. O Barca Velha é um trabalho de erudição, evidentemente. Dispensando os sufrágios das academias, ele entra nos nossos dicionários como sinónimo de poesia «os vinhos odoríferos», de que falava Camões, mas também os vinhos com «mais alma que muito poema ou livro santo», como escrevia Eça, da mais intensa, da mais inesquecível. Na sua história está a história de uma paixão pelo vinho e de uma obra de cultura.
Diz-se, na tradição bíblica, que Noé se dedicou a plantar vinhas depois de ter sobrevivido ao dilúvio. Os vários dilúvios do Douro, certamente divinos, por serem tão intensos e tão inesperados, não interromperam essa alquimia que tornou possível o Barca Velha. A nossa alma tem enorme divida de gratidão para com os seus criadores.
Prefácio ao livro “Barca Velha – Histórias de um vinho” de Ana Sofia Fonseca, Ed. Dom Quixote (Colecção Cadernos de Reportagem), Lisboa, 2004
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