novembro 27, 2006

O governo ou o caos

Uma das tentações mais medíocres do homem público consiste em queixar-se da imprensa. Acontece a todos e a lista de queixosos é vasta, desacreditada e, vá lá, está cheia de gente inutilizada pela política.

O senhor ministro da Saúde foi recentemente à televisão e, a meio, sucumbiu à tentação de falar dos seus inimigos ocultos ou com identidade duvidosa. Diante das câmaras da SIC Notícias, o senhor ministro da Saúde acusou os jornalistas em geral, bem como as televisões e os jornais, de receberem dinheiro da indústria farmacêutica a fim de publicarem ou difundirem as instruções, as notícias, as indicações e a opinião da mesma indústria. Eu, que li "O Fiel Jardineiro", de John Le Carré, muito antes do senhor Ministro, e que na extinta "Grande Reportagem" acompanhei as investigações em redor do "caso Pequito", sucumbi à revelação finalmente, alguém com elevadas responsabilidades políticas, como é o caso do senhor ministro da Saúde, permitia-se o luxo de fazer acusações na televisão. Não acusações tão vagas como mencionar a existência de uma conspiração, de uma rede de acordos obscuros, de uma máfia dos medicamentos e dos negócios hospitalares. Não. O senhor ministro da Saúde, com a sua habitual placidez, indicava dois inimigos brutais: os jornalistas e a indústria farmacêutica. Naturalmente, havia provas, havia dados, havia factos, havia demonstração clara de uma conspiração, de uma negociata e de uma barreira (até aí invisível, portanto) contra o sistema de saúde português.

Desilusão. Analisadas as declarações, bem vistas as frases, tratava-se apenas de uma acusação tão vaga como a de Santana Lopes contra os árbitros de Canal Caveira. O que diz quase tudo sobre a matéria.

Procurei no site do sindicato dos jornalistas uma reacção contra as declarações do ministro; nada. Visitei os blogues mais atentos ao assunto; nada. Procurei no site da digníssima Entidade Reguladora da Comunicação Social, tão sempre vigilante; nada. Um cidadão (embora ministro) faz acusações tão fortes e definitivas, acusando jornalistas de receberem dinheiro e a indústria de o fornecer com abundância - e ninguém liga ao assunto. Que desperdício.

No dia seguinte, porém, um assessor do ministro aparece para deslocar a acusação. Afinal, a indústria não paga aos jornalistas e sim às agências de comunicação que, a seu bel-prazer, publicam e difundem essas notícias junto da opinião pública. Sinceramente, é pior a emenda do que a asneira anterior: como a entidade "os jornalistas" é demasiado difusa, a assessoria do senhor ministro encontrou as agências de comunicação (às quais o governo e o ministério da Saúde recorrem abundantemente) como alvo, e as empresas de comunicação social como parceiros de mais "uma cabala".

Se fosse Santana Lopes a dizer o que o senhor ministro da Saúde disse na SIC Notícias, haveria escândalo, comissões de inquérito e vigílias públicas contra o desavergonhado; neste caso, o pedagógico silêncio que se seguiu é bastante revelador do silêncio em que o país parece querer entreter-se.

Não se riam. Este mesmo fim-de-semana, o senhor ministro das Finanças, numa reunião de militantes socialistas, deu o tom geral do ambiente. Quem protesta contra as medidas do governo, quem põe em causa qualquer das suas políticas, quem duvida (seja do défice, seja das iniciativas de combate ao défice), não é adversário do governo, do partido ou do ministro - é inimigo (reparem bem!) "dos portugueses". Dir-me-ão que o senhor ministro das Finanças estava entre os seus, e que a conversa para a rapaziada seu do partido tem de ser assim mesmo. Não: era uma mensagem clara para os microfones das rádios e para as câmaras de televisão, para todos nós.

À força de tanta unanimidade, com a colaboração ingénua do senhor presidente da República, os operacionais do governo acabarão por identificar "os portugueses" com "o governo". Tenham cuidado.

in Jornal de Notícias - 27 Novembro 2006