A anestesia e o peão de Cavaco
Nenhum assunto mobiliza tantos cérebros como a ideia de existir uma alternativa a José Sócrates e à dupla que o Presidente da República, de facto, estabelece com o governo.
Sabe-se o que são as campanhas e o que têm de dizer os “cabos eleitorais” nessas circunstâncias, mas uma das evidências mais sonoras é que Cavaco Silva, que viria para destruir Sócrates, é agora um conformista adaptado à presciência socialista. Por isso, é legítimo que nos interroguemos sobre a utilidade da recente entrevista televisiva do Presidente da República. Serviu para quê? Só vejo uma razão: para garantir que existe “estabilidade institucional”, ou seja, para avisar sobre a “cooperação entre o PR e o governo”, facto que o Presidente não precisa de vir lembrar. Por um motivo: nem a “estabilidade” nem a “cooperação” estavam em causa. Não havia necessidade. A rua protesta mas não põe em causa nem “as instituições” nem as sondagens que aprovam as iniciativas do governo e constatam a popularidade do presidente.
Uma profundíssima anestesia domina a opinião pública, dividida entre as explicações e os silêncios do governo e a demagogia da rua. Uma das provas dessa anestesia geral tem como pano de fundo o recente congresso do PS – já se sabe como é possível transformar uma reunião partidária numa cerimónia laudatória (tanto o PCP como o PS e o PSD o fizeram abundantemente), mas não passou despercebida a ninguém a profunda contradição entre o discurso permanente de José Sócrates e a prática do seu governo. Vamos ser claros: o discurso “do social” não coincide com a prática do governo, que aplica a receita que a direita propôs durante anos para o Estado e para o país. Por culpa dessa direita mandriona, preguiçosa, incompetente e dividida em baronatos e interesses compreensíveis (mas nem por isso autorizados) além de cheia de medo da rua esquerdista, coube ao PS de Sócrates lançar algumas das mais urgentes reformas políticas, mesmo se para isso teve de atraiçoar tanto o programa eleitoral como “o socialismo”. A bem da verdade, “o socialismo” já não existia em lado nenhum, e Sócrates soube evitar fazer promessas eleitorais. Não se queixem agora. Estava tudo escrito com uma limpidez básica, elementar.
Neste contexto, o discurso “de esquerda” do primeiro-ministro é apenas para consumo interno; as tiradas definitivas do ministro das finanças e de Sócrates sobre “o controlo do défice” não são promissoras para a esquerda mas hão-de garantir-lhe sucesso antes das próximas eleições.
A estratégia do governo reside exactamente nisto: dizer que não só não há alternativa a José Sócrates como as suas políticas são inevitáveis. Não causaria estranheza se, num dos seus arroubos ditirâmbicos – mais vulgares do que se pensa –, Sócrates cair na esparrela de declarar “ou eu ou o caos”.
E, se isso acontecer, também não convém estranhar; a anestesia da opinião pública e a vontade de unanimidade nacional encaminham as coisas para esse patamar.
Por outro lado, há uma questão infantil de timing na entrevista do Presidente: primeiro, Cavaco desarma os catastrofistas que, no PS, e durante toda a campanha presidencial, lançaram repetidos avisos sobre quão trágica iria ser a eleição de um presidente destinado a minar e torpedear a acção de José Sócrates. Vai abaixo essa argumentação.Segundo, Cavaco quer reinar no país dos seus sonhos – tranquilo, com os remadores afinados e a miragem “do crescimento” no final do sprint. Aqui sim, pode estar o erro de perspectiva: a sociedade tem o direito de viver a política de forma conflituosa. Mas de uma coisa ninguém pode acusar Cavaco: de não dar a sua opinião. Ele pensa aquilo. Sempre o pensou. E hoje, Sócrates é, também, o seu peão.
in Jornal de Notícias – 20 Novembro 2006
Sabe-se o que são as campanhas e o que têm de dizer os “cabos eleitorais” nessas circunstâncias, mas uma das evidências mais sonoras é que Cavaco Silva, que viria para destruir Sócrates, é agora um conformista adaptado à presciência socialista. Por isso, é legítimo que nos interroguemos sobre a utilidade da recente entrevista televisiva do Presidente da República. Serviu para quê? Só vejo uma razão: para garantir que existe “estabilidade institucional”, ou seja, para avisar sobre a “cooperação entre o PR e o governo”, facto que o Presidente não precisa de vir lembrar. Por um motivo: nem a “estabilidade” nem a “cooperação” estavam em causa. Não havia necessidade. A rua protesta mas não põe em causa nem “as instituições” nem as sondagens que aprovam as iniciativas do governo e constatam a popularidade do presidente.
Uma profundíssima anestesia domina a opinião pública, dividida entre as explicações e os silêncios do governo e a demagogia da rua. Uma das provas dessa anestesia geral tem como pano de fundo o recente congresso do PS – já se sabe como é possível transformar uma reunião partidária numa cerimónia laudatória (tanto o PCP como o PS e o PSD o fizeram abundantemente), mas não passou despercebida a ninguém a profunda contradição entre o discurso permanente de José Sócrates e a prática do seu governo. Vamos ser claros: o discurso “do social” não coincide com a prática do governo, que aplica a receita que a direita propôs durante anos para o Estado e para o país. Por culpa dessa direita mandriona, preguiçosa, incompetente e dividida em baronatos e interesses compreensíveis (mas nem por isso autorizados) além de cheia de medo da rua esquerdista, coube ao PS de Sócrates lançar algumas das mais urgentes reformas políticas, mesmo se para isso teve de atraiçoar tanto o programa eleitoral como “o socialismo”. A bem da verdade, “o socialismo” já não existia em lado nenhum, e Sócrates soube evitar fazer promessas eleitorais. Não se queixem agora. Estava tudo escrito com uma limpidez básica, elementar.
Neste contexto, o discurso “de esquerda” do primeiro-ministro é apenas para consumo interno; as tiradas definitivas do ministro das finanças e de Sócrates sobre “o controlo do défice” não são promissoras para a esquerda mas hão-de garantir-lhe sucesso antes das próximas eleições.
A estratégia do governo reside exactamente nisto: dizer que não só não há alternativa a José Sócrates como as suas políticas são inevitáveis. Não causaria estranheza se, num dos seus arroubos ditirâmbicos – mais vulgares do que se pensa –, Sócrates cair na esparrela de declarar “ou eu ou o caos”.
E, se isso acontecer, também não convém estranhar; a anestesia da opinião pública e a vontade de unanimidade nacional encaminham as coisas para esse patamar.
Por outro lado, há uma questão infantil de timing na entrevista do Presidente: primeiro, Cavaco desarma os catastrofistas que, no PS, e durante toda a campanha presidencial, lançaram repetidos avisos sobre quão trágica iria ser a eleição de um presidente destinado a minar e torpedear a acção de José Sócrates. Vai abaixo essa argumentação.Segundo, Cavaco quer reinar no país dos seus sonhos – tranquilo, com os remadores afinados e a miragem “do crescimento” no final do sprint. Aqui sim, pode estar o erro de perspectiva: a sociedade tem o direito de viver a política de forma conflituosa. Mas de uma coisa ninguém pode acusar Cavaco: de não dar a sua opinião. Ele pensa aquilo. Sempre o pensou. E hoje, Sócrates é, também, o seu peão.
in Jornal de Notícias – 20 Novembro 2006
<< Home