novembro 03, 2006

Cidades: (3) Jerusálem

Uma vez acordei com o nascer do Sol em Jerusalém – ou seja, lá pelas cinco e meia. Queria começar a cró­nica por esta frase para vos lembrar que o nascer do Sol de Jerusalém, acompanhado desde a chegada da pri­meira luz, é um espectáculo deslum­brante se nos pomos a caminho dos muros da Cidade Velha, e entramos nas suas ruas em busca de um café, de um chá, de um pequeno-almoço sem hora marcada para terminar.

As horas do dia são únicas em cada lugar – o nascer do Sol é único em Jerusalém como no mar Morto, como numa cidade africana, como na minha rua, mas o perfume da «cidade santa» (não há coisa mais estranha pa­ra eu escrever) transporta consigo os sinais da História em cada pedra, em cada muro, em cada rua.

Provavelmente, os amanheceres mais citados ao longo de toda a história da literatura são os de Nova Iorque (ao fim de uma noite) ou os de Jerusalém (ao princípio de um dia). Sempre me alertaram para o amanhecer de Jerusa­lém e para as suas cores, tal como me puseram de sobreaviso acerca de qual porta da Cidade Velha eu devia tomar para que o coração me não perdesse. Mas os viajantes, como se sabe, são in­disciplinados. Há muitas maneiras de falar de Jerusalém, e a maior parte delas começa pelo cerco da História, pela sua cronologia, pela tentação de sucumbir ao seu lado de arena religiosa cristã, ju­daica e muçulmana — precisamente porque cada cidade exige «um ponto de vista», e essa marca, no caso de Jeru­salém, é tão avassaladora que ninguém consegue escapar à imagem.

No meu caso, porém, a cidade foi sempre uma espécie de perdição e de lugar de reencontro. Ao chegar, uma sensação de tranquilidade; ao partir, uma ventania de perturbação. Não me incomodam nem a profusão de sinais religiosos, nem o seu cruzamento, nem a designação de Al Quds (nome árabe dos seus muros), nem as disputas sobre o seu território – sempre a vi como «o lugar de todos», uma cidade de passa­gem, uma praça onde se mistura gente de todo o mundo e, por isso, um dos centros da nossa civilização. Livrarias abertas até tarde, lojas, restaurantes de todas as gastronomias e de todos os cre­dos, templos de todas as confissões, rou­pas de todas as tradições, ruas para ca­minhar. ..

Essa é a minha Jerusalém no alto das colinas. Não, nela não procuro os «lugares santos» (mas eles estão lá, disponíveis), nem a memória fantástica ou atribulada das religiões do Livro. Aprendi, com o tempo e com a Histó­ria, a duvidar das «religiões como factor de paz» e, por isso, a minha Jerusalém, a que persegui ao fim de muitas visitas, é ainda mais desordenada do que as ruas do Bazar nas horas do meio-dia. Li­mito-me a visitar o Muro (Kottël) ' porque cada um de nós deve ter um lu­gar, mas não faço dele o centro do mundo, nem sequer do meu mundo. Depois, parto. Visito os mercados, as livrarias onde se empilham raridades e maquinações («verdades falsas» e «conspirações celestes» nascem sempre onde a religião tem a sua casa terrena), os restaurantes árabes e judeus, bebo Maccabi e Layla («The dirty blonde lager»), as minhas cervejas, assisto ao dia, sinto-me um deles, um dos que passa rente aos muros das ruas antigas ou dos que devia passar em praças aber­tas e pacíficas.

E, sempre que desço a estrada para Telavive, despedindo-me, a fim de apanhar o avião da noite, paro a meio da colina para ver o sol derradeiro a ilumi­nar as cúpulas, os minaretes, o que resta de um mundo que podia ser perfeito.

in Outro Hemisfério - Revista Volta ao Mundo - Novembro 2006