Cidades: (3) Jerusálem
Uma vez acordei com o nascer do Sol em Jerusalém – ou seja, lá pelas cinco e meia. Queria começar a crónica por esta frase para vos lembrar que o nascer do Sol de Jerusalém, acompanhado desde a chegada da primeira luz, é um espectáculo deslumbrante se nos pomos a caminho dos muros da Cidade Velha, e entramos nas suas ruas em busca de um café, de um chá, de um pequeno-almoço sem hora marcada para terminar.
As horas do dia são únicas em cada lugar – o nascer do Sol é único em Jerusalém como no mar Morto, como numa cidade africana, como na minha rua, mas o perfume da «cidade santa» (não há coisa mais estranha para eu escrever) transporta consigo os sinais da História em cada pedra, em cada muro, em cada rua.
Provavelmente, os amanheceres mais citados ao longo de toda a história da literatura são os de Nova Iorque (ao fim de uma noite) ou os de Jerusalém (ao princípio de um dia). Sempre me alertaram para o amanhecer de Jerusalém e para as suas cores, tal como me puseram de sobreaviso acerca de qual porta da Cidade Velha eu devia tomar para que o coração me não perdesse. Mas os viajantes, como se sabe, são indisciplinados. Há muitas maneiras de falar de Jerusalém, e a maior parte delas começa pelo cerco da História, pela sua cronologia, pela tentação de sucumbir ao seu lado de arena religiosa cristã, judaica e muçulmana — precisamente porque cada cidade exige «um ponto de vista», e essa marca, no caso de Jerusalém, é tão avassaladora que ninguém consegue escapar à imagem.
No meu caso, porém, a cidade foi sempre uma espécie de perdição e de lugar de reencontro. Ao chegar, uma sensação de tranquilidade; ao partir, uma ventania de perturbação. Não me incomodam nem a profusão de sinais religiosos, nem o seu cruzamento, nem a designação de Al Quds (nome árabe dos seus muros), nem as disputas sobre o seu território – sempre a vi como «o lugar de todos», uma cidade de passagem, uma praça onde se mistura gente de todo o mundo e, por isso, um dos centros da nossa civilização. Livrarias abertas até tarde, lojas, restaurantes de todas as gastronomias e de todos os credos, templos de todas as confissões, roupas de todas as tradições, ruas para caminhar. ..
Essa é a minha Jerusalém no alto das colinas. Não, nela não procuro os «lugares santos» (mas eles estão lá, disponíveis), nem a memória fantástica ou atribulada das religiões do Livro. Aprendi, com o tempo e com a História, a duvidar das «religiões como factor de paz» e, por isso, a minha Jerusalém, a que persegui ao fim de muitas visitas, é ainda mais desordenada do que as ruas do Bazar nas horas do meio-dia. Limito-me a visitar o Muro (Kottël) ' porque cada um de nós deve ter um lugar, mas não faço dele o centro do mundo, nem sequer do meu mundo. Depois, parto. Visito os mercados, as livrarias onde se empilham raridades e maquinações («verdades falsas» e «conspirações celestes» nascem sempre onde a religião tem a sua casa terrena), os restaurantes árabes e judeus, bebo Maccabi e Layla («The dirty blonde lager»), as minhas cervejas, assisto ao dia, sinto-me um deles, um dos que passa rente aos muros das ruas antigas ou dos que devia passar em praças abertas e pacíficas.
E, sempre que desço a estrada para Telavive, despedindo-me, a fim de apanhar o avião da noite, paro a meio da colina para ver o sol derradeiro a iluminar as cúpulas, os minaretes, o que resta de um mundo que podia ser perfeito.
in Outro Hemisfério - Revista Volta ao Mundo - Novembro 2006
As horas do dia são únicas em cada lugar – o nascer do Sol é único em Jerusalém como no mar Morto, como numa cidade africana, como na minha rua, mas o perfume da «cidade santa» (não há coisa mais estranha para eu escrever) transporta consigo os sinais da História em cada pedra, em cada muro, em cada rua.
Provavelmente, os amanheceres mais citados ao longo de toda a história da literatura são os de Nova Iorque (ao fim de uma noite) ou os de Jerusalém (ao princípio de um dia). Sempre me alertaram para o amanhecer de Jerusalém e para as suas cores, tal como me puseram de sobreaviso acerca de qual porta da Cidade Velha eu devia tomar para que o coração me não perdesse. Mas os viajantes, como se sabe, são indisciplinados. Há muitas maneiras de falar de Jerusalém, e a maior parte delas começa pelo cerco da História, pela sua cronologia, pela tentação de sucumbir ao seu lado de arena religiosa cristã, judaica e muçulmana — precisamente porque cada cidade exige «um ponto de vista», e essa marca, no caso de Jerusalém, é tão avassaladora que ninguém consegue escapar à imagem.
No meu caso, porém, a cidade foi sempre uma espécie de perdição e de lugar de reencontro. Ao chegar, uma sensação de tranquilidade; ao partir, uma ventania de perturbação. Não me incomodam nem a profusão de sinais religiosos, nem o seu cruzamento, nem a designação de Al Quds (nome árabe dos seus muros), nem as disputas sobre o seu território – sempre a vi como «o lugar de todos», uma cidade de passagem, uma praça onde se mistura gente de todo o mundo e, por isso, um dos centros da nossa civilização. Livrarias abertas até tarde, lojas, restaurantes de todas as gastronomias e de todos os credos, templos de todas as confissões, roupas de todas as tradições, ruas para caminhar. ..
Essa é a minha Jerusalém no alto das colinas. Não, nela não procuro os «lugares santos» (mas eles estão lá, disponíveis), nem a memória fantástica ou atribulada das religiões do Livro. Aprendi, com o tempo e com a História, a duvidar das «religiões como factor de paz» e, por isso, a minha Jerusalém, a que persegui ao fim de muitas visitas, é ainda mais desordenada do que as ruas do Bazar nas horas do meio-dia. Limito-me a visitar o Muro (Kottël) ' porque cada um de nós deve ter um lugar, mas não faço dele o centro do mundo, nem sequer do meu mundo. Depois, parto. Visito os mercados, as livrarias onde se empilham raridades e maquinações («verdades falsas» e «conspirações celestes» nascem sempre onde a religião tem a sua casa terrena), os restaurantes árabes e judeus, bebo Maccabi e Layla («The dirty blonde lager»), as minhas cervejas, assisto ao dia, sinto-me um deles, um dos que passa rente aos muros das ruas antigas ou dos que devia passar em praças abertas e pacíficas.
E, sempre que desço a estrada para Telavive, despedindo-me, a fim de apanhar o avião da noite, paro a meio da colina para ver o sol derradeiro a iluminar as cúpulas, os minaretes, o que resta de um mundo que podia ser perfeito.
in Outro Hemisfério - Revista Volta ao Mundo - Novembro 2006
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