novembro 25, 2006

Um clássico, vamos lá


Desta vez, o cronista não foi por atalhos: reentrou no Gambrinus. Não é um restaurante para gastrónomos, mas é um clássico indispensável.

A nossa tentação, quando entramos pela primeira vez pela porta do Gambrinus é a de desfalecer de comoção. Mais, muito mais, de metade da classe política lisboeta treina de garfo e faca no Gambrinus; conspirações notáveis tiveram lugar àquelas mesas, em jantares intermináveis, palradores, tremendos – perante a discrição dos criados, dos chefes, dos escanções, e a curiosidade dos vizinhos; comemorações efusivas passaram por ali; e jantares tranquilos, ao balcão; e ceias tardias depois de um espectáculo; e jantares antes de um espectáculo; e negócios, tanto produtivos como ruinosos, foram combinados sobre as toalhas brancas do Gambrinus, aproveitando as possibilidades da sua garrafeira.

Há nomes cuja biografia passou por estas duas salas austeras, datadas, herdeiras da cozinha das melhores memórias galegas da capital. E inveja, muita inveja: um jantar no Gambrinus é motivo de suspeita, de inveja e de murmúrio. Aconteceu-me o mesmo a mim, pobre homem de província, quando, há muitos anos, entrei no Gambrinus para uma ceia: alheira, bife, empada de caça, vinhos escolhidos a preceito, brindes, um champanhe comemorativo. Calhou. Voltei algumas vezes pelo meio, com amigos, para deglutir um jantar tardio ao balcão ou para falar de projectos que nunca se realizaram. Voltei recentemente e já mal recordava a austeridade do seu mobiliário, datado, marcado pela memória dos restaurantes de meados do século passado – onde somos bem atendidos, encaminhados com rapidez simpática para a mesa que nos foi reservada. Juntamente com o mobiliário e a luz (os reflexos dourados nas madeiras, os talheres clássicos, usados), há ainda a ementa clássica, igualmente datada, cheia de memórias de frequentadores que a conhecem de cor e não a comentam como bibliófilos.

Os “habitués” do Gambrinus mal precisam dela – nem precisam de relembrar qual a marca de whisky (de “Famous Grouse” a “Macallan”), o tipo de vinho, a altura em que o café de balão é servido: ali existe a familiaridade de clube privado, de hábitos familiares, de conhecimento real. O senhor doutor gosta de percebes, o senhor engenheiro aprecia camarão de Espinho – não acho mal. A vida dos grandes restaurantes é feita de pormenores como estes, e, na verdade, tanto os percebes como os camarões de Espinho, vamos lá, são excelentes. Comi alguns ao balcão, com um velho amigo muito mais conspiratório do que eu – consciente do pecado, evidentemente –, e terminando com um bife suculento na companhia de cerveja (ele não, que bebeu “Pêra Manca”), em memória do duque Jean Primus, que – em corruptela – deu em Gambrinus, o rei da cerveja, o primaz da cerveja, o nome que evoca os prazeres da mesa e da cerveja. Mas o Gambrinus é conhecido pela sua garrafeira, igualmente conservadora, cinquentona, cheia de referências aos clássicos da nossa vinicultura (do Douro, do Dão, da Bairrada) – e pelos vinhos servidos com critério, cuidado, atenção, quer para acompanhar os mariscos iniciais, entrantes (ostras frescas, camarão, lagostins, búzios, percebes), com as torradinhas escorrendo manteiga, quer os peixes clássicos ou as carnes tentadoras: bacalhau à Gomes de Sá (foi a minha opção mais recente; é um dos meus bacalhaus preferidos), perdiz de toda a maneira e feitio (na empada, formosíssima, na caçarola, com castanhas, etc.), a famosa sopa rica de peixes (que me disseram ser uma sombra dos seus grandes dias), a alheira de caça, os rojões na versão transmontana, o cabrito no forno (à Souto-Mor) com arroz de ervilhas, o frango à Cafreal, a panóplia de peixes frescos grelhados, os bifes suculentos e correctos (mas com “finesse” superlativa, se me entendem), as iscas (de fígado), os bacalhaus clássicos – e a tarte de requeijão, de que eu gosto particularmente.

O Gambrinus é uma instituição de cozinha flutuante; não brilha, como a luz eterna – mas mantém-se acesa com pundonor. Não é vibrante, acolhendo gastrónomos – é uma casa indispensável à história da cozinha lisboeta, onde é necessário ir uma vez na vida. Até para perder o preconceito contra os restaurantes clássicos e para nos habituarmos a um serviço de grande qualidade, sem ademanes mas com eficácia e muita consideração, sereno, discreto, muito profissional.

À lupa
Carta de vinhos: * * *
Carta de digestivos: * * * *
Facilidade de acesso: * * *
Decoração: * * *
Serviço à mesa: * * * *
Acolhimento: * * * *
Mesa: * * * *
Ruído da sala: * * * *
Ar condicionado: * * * *

Garrafeira
Vinhos brancos: 71
Vinhos tintos: 182
Vinhos verdes: 14
Portos e Madeiras: 28
Uísques: 22
Aguardentes & conhaques: 32
Champanhes & espumantes: 18

Outros dados
Charutos: sim
Estacionamento: apenas nos parques nas proximidades
Adequado levar crianças: não
Tem área de não-fumadores: sim
Reserva: muito conveniente
Preço médio: 60 euros
Cartões: MB, V, D, M, AM

GAMBRINUS
Rua Portas de Santo Antão, 23/25
Lisboa
Tel: 213421466

in Revista Notícias Sábado - 25 Novembro 2006