O senhor Abade
O Abade de Priscos merece uma visita do cronista depois de uma carreira cheia de comida simples, agradável e com toques pessoais de Fernando Beleza, o proprietário deste histórico de Braga.
Há quantos anos abriu o Abade de Priscos? Há muitos. Nessa altura falava-se da "'nouvelle cuisine' à moda de Braga", o que significava – antes de mais – que nem só bacalhau à Narcisa e seus derivados e familiares, bem como rojões e sarrabulho se comia na Cidade dos Arcebispos.
Esclareço que nunca – verdadeiramente, nunca – antes eu tinha escrito "Cidade dos Arcebispos". É daquelas expressões que nunca me sugeriram Braga, nunca me lembraram Braga e nunca me ajudaram a gostar nem menos nem mais de Braga. É uma estreia, portanto. Em vez de "a Cidade dos Arcebispos", que é a muleta de todos os comentadores desportivos quando se referem à cidade, eu tenho vícios que me reenviam a Camilo e, se me fazem esse favor, a Luiz Pacheco – com muito menos moralidade. Pessoalmente (vejam como as coisas são absurdas), Braga é a cidade de alguns dos meus cafés preferidos, de algumas das minhas livrarias preferidas, da minha biblioteca pública preferida (o País deve muito a Henrique Barreto Nunes, seu director e grande bibliófilo) e de alguns bons amigos de juventude. Eu vivia então noutra cidade mais a norte – da qual, através da EN103, se chegava a Braga para uma visita civilizatória e periódica. Com o tempo, amadurecendo, foi sendo também a cidade de alguns dos meus restaurantes (coisa que só se aprende a conhecer quando a idade nos favorece de alguma maneira) e ponto de partida para incursões pela província fora, com o 'Minho Pittoresco' debaixo do braço, sorvendo as suas indicações como se se vivesse em 1886, data em que saiu a utilíssima edição do primeiro tomo de José Augusto Vieira. Eis uma das razões por que nunca escrevi antes "Cidade dos Arcebispos" e lhe preferi outras.
Seja como for, creio que conheci Fernando Beleza em 1982 – quando o seu restaurante, O Abade de Priscos, era então uma raridade. Ali escondido, num primeiro andar de uma praça famosa por coabitar com teólogos antigos e modernos, a sua sala de jantar ocupava um sobrado de madeira com louceiros e móveis com evocações domésticas – o serviço era ainda mais familiar, redondo, aplicado e cordato. E a comida, na época, uma novidade: caril de camarão, bacalhau gratinado, posta mirandesa, espetada em pau de louro (que Fernando Beleza ia buscar ao campo na altura certa) e o notável pudim. Regresso a espaços. Regresso já nem por causa da comida, ou dessa minha juventude que passou por Braga, ou de qualquer memória; acho que regresso porque me habituei ao lugar, às escadas de madeira que levam ao primeiro andar, à mesa do canto (junto a uma janela), à conversa do Fernando (que já foi editor, que guarda segredos, que tem história) e à lista clássica da casa. Continua o bacalhau gratinado (numa terra conhecida pelas suas "postas à bracarense", fritinhas e aceboladas), continua o caril de camarão, permanecem a alcatra açoriana (muito apreciável, mesmo para quem está habituado a comê-la na ilha Terceira), a galinha mourisca e os pezinhos de coentrada de magníficas e suculentas gelatinas, escorrendo dos ossinhos. A isto se acrescentam a feijoada de polvo (que nunca comi; desculpa, Fernando) e uma das notas superiores da casa – o cabrito em molho de salva, o que constitui um contraste perfeito entre o agridoce da erva e a carne de texturas salgadinhas. Além dos bifinhos gulosos, o Abade de Priscos apresenta ainda, periodicamente, um prato de "presunto em boa companhia", um clássico duriense da minha eleição, anotado nas melhores recolhas da região (há um texto quase ditirâmbico de Sarmento Pimentel sobre o assunto), e uma recente inovação que mistura lascas de carnes pecaminosas (coelho, galinha do campo, porco preto) com arroz de cogumelos selvagens – onde há míscaros abundantes – e enchidos de Portalegre. Simplicidade absoluta nas sobremesas, onde se desafiam mutuamente o pudim do Abade de Priscos, um leite-creme queimado, o doce de requeijão com chocolate e uma mousse de chocolate.
Se a carta de vinhos é curta (mas tem o essencial), a salinha do restaurante eleva-me o espírito em noites de chuva, como aconteceu da última visita. É bom voltar.
À LUPA
Carta de vinhos: * *
Carta de digestivos: * *
Facilidade de acesso: * * *
Decoração: * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *
Garrafeira
Vinhos tintos: 30
Vinhos brancos: 10
Vinhos verdes e Alvarinhos: 5
Portos & Madeiras: 5
Uísques: 8
Aguardentes portuguesas: 9
Outros dados
Charutos: Não
Estacionamento: parques nas redondezas
Levar crianças: sim
Bengaleiro: sim
Reserva: aconselhável à noite e fim-de-semana
Preço médio: 18 euros
Cartões: Não aceita
ABADE DE PRISCOS
Praça Mouzinho de Albuquerque, n.º 71
4710-301 Braga
Tel. 253 276 650
in Revista Notícias Sábado – 11 Novembro 2006
Há quantos anos abriu o Abade de Priscos? Há muitos. Nessa altura falava-se da "'nouvelle cuisine' à moda de Braga", o que significava – antes de mais – que nem só bacalhau à Narcisa e seus derivados e familiares, bem como rojões e sarrabulho se comia na Cidade dos Arcebispos.
Esclareço que nunca – verdadeiramente, nunca – antes eu tinha escrito "Cidade dos Arcebispos". É daquelas expressões que nunca me sugeriram Braga, nunca me lembraram Braga e nunca me ajudaram a gostar nem menos nem mais de Braga. É uma estreia, portanto. Em vez de "a Cidade dos Arcebispos", que é a muleta de todos os comentadores desportivos quando se referem à cidade, eu tenho vícios que me reenviam a Camilo e, se me fazem esse favor, a Luiz Pacheco – com muito menos moralidade. Pessoalmente (vejam como as coisas são absurdas), Braga é a cidade de alguns dos meus cafés preferidos, de algumas das minhas livrarias preferidas, da minha biblioteca pública preferida (o País deve muito a Henrique Barreto Nunes, seu director e grande bibliófilo) e de alguns bons amigos de juventude. Eu vivia então noutra cidade mais a norte – da qual, através da EN103, se chegava a Braga para uma visita civilizatória e periódica. Com o tempo, amadurecendo, foi sendo também a cidade de alguns dos meus restaurantes (coisa que só se aprende a conhecer quando a idade nos favorece de alguma maneira) e ponto de partida para incursões pela província fora, com o 'Minho Pittoresco' debaixo do braço, sorvendo as suas indicações como se se vivesse em 1886, data em que saiu a utilíssima edição do primeiro tomo de José Augusto Vieira. Eis uma das razões por que nunca escrevi antes "Cidade dos Arcebispos" e lhe preferi outras.
Seja como for, creio que conheci Fernando Beleza em 1982 – quando o seu restaurante, O Abade de Priscos, era então uma raridade. Ali escondido, num primeiro andar de uma praça famosa por coabitar com teólogos antigos e modernos, a sua sala de jantar ocupava um sobrado de madeira com louceiros e móveis com evocações domésticas – o serviço era ainda mais familiar, redondo, aplicado e cordato. E a comida, na época, uma novidade: caril de camarão, bacalhau gratinado, posta mirandesa, espetada em pau de louro (que Fernando Beleza ia buscar ao campo na altura certa) e o notável pudim. Regresso a espaços. Regresso já nem por causa da comida, ou dessa minha juventude que passou por Braga, ou de qualquer memória; acho que regresso porque me habituei ao lugar, às escadas de madeira que levam ao primeiro andar, à mesa do canto (junto a uma janela), à conversa do Fernando (que já foi editor, que guarda segredos, que tem história) e à lista clássica da casa. Continua o bacalhau gratinado (numa terra conhecida pelas suas "postas à bracarense", fritinhas e aceboladas), continua o caril de camarão, permanecem a alcatra açoriana (muito apreciável, mesmo para quem está habituado a comê-la na ilha Terceira), a galinha mourisca e os pezinhos de coentrada de magníficas e suculentas gelatinas, escorrendo dos ossinhos. A isto se acrescentam a feijoada de polvo (que nunca comi; desculpa, Fernando) e uma das notas superiores da casa – o cabrito em molho de salva, o que constitui um contraste perfeito entre o agridoce da erva e a carne de texturas salgadinhas. Além dos bifinhos gulosos, o Abade de Priscos apresenta ainda, periodicamente, um prato de "presunto em boa companhia", um clássico duriense da minha eleição, anotado nas melhores recolhas da região (há um texto quase ditirâmbico de Sarmento Pimentel sobre o assunto), e uma recente inovação que mistura lascas de carnes pecaminosas (coelho, galinha do campo, porco preto) com arroz de cogumelos selvagens – onde há míscaros abundantes – e enchidos de Portalegre. Simplicidade absoluta nas sobremesas, onde se desafiam mutuamente o pudim do Abade de Priscos, um leite-creme queimado, o doce de requeijão com chocolate e uma mousse de chocolate.
Se a carta de vinhos é curta (mas tem o essencial), a salinha do restaurante eleva-me o espírito em noites de chuva, como aconteceu da última visita. É bom voltar.
À LUPA
Carta de vinhos: * *
Carta de digestivos: * *
Facilidade de acesso: * * *
Decoração: * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *
Garrafeira
Vinhos tintos: 30
Vinhos brancos: 10
Vinhos verdes e Alvarinhos: 5
Portos & Madeiras: 5
Uísques: 8
Aguardentes portuguesas: 9
Outros dados
Charutos: Não
Estacionamento: parques nas redondezas
Levar crianças: sim
Bengaleiro: sim
Reserva: aconselhável à noite e fim-de-semana
Preço médio: 18 euros
Cartões: Não aceita
ABADE DE PRISCOS
Praça Mouzinho de Albuquerque, n.º 71
4710-301 Braga
Tel. 253 276 650
in Revista Notícias Sábado – 11 Novembro 2006
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