novembro 11, 2006

O senhor Abade

O Abade de Priscos merece uma visita do cronista depois de uma carreira cheia de comida simples, agradável e com toques pessoais de Fernando Beleza, o proprietário deste histórico de Braga.

Há quantos anos abriu o Abade de Priscos? Há muitos. Nessa altura falava-se da "'nouvelle cuisine' à moda de Braga", o que significava – antes de mais – que nem só bacalhau à Narcisa e seus deri­vados e familiares, bem como rojões e sarrabulho se comia na Cidade dos Arcebispos.

Esclareço que nunca – verdadeiramente, nunca – antes eu tinha escrito "Cidade dos Arcebispos". É daquelas expressões que nunca me sugeriram Braga, nunca me lembraram Braga e nunca me aju­daram a gostar nem menos nem mais de Braga. É uma estreia, portanto. Em vez de "a Cidade dos Arcebispos", que é a muleta de todos os comentado­res desportivos quando se referem à cidade, eu tenho vícios que me reenviam a Camilo e, se me fazem esse favor, a Luiz Pacheco – com muito menos moralidade. Pessoalmente (vejam como as coisas são absurdas), Braga é a cidade de alguns dos meus cafés preferidos, de algumas das minhas livrarias preferidas, da minha biblioteca pública preferida (o País deve muito a Henrique Barreto Nunes, seu director e grande bibliófilo) e de alguns bons amigos de juven­tude. Eu vivia então noutra cidade mais a norte – da qual, através da EN103, se chegava a Braga para uma visita civilizatória e periódica. Com o tempo, ama­durecendo, foi sendo também a cidade de alguns dos meus restaurantes (coisa que só se aprende a conhecer quando a idade nos favorece de alguma maneira) e ponto de partida para incursões pela pro­víncia fora, com o 'Minho Pittoresco' debaixo do braço, sorvendo as suas indicações como se se vivesse em 1886, data em que saiu a utilíssima edi­ção do primeiro tomo de José Augusto Vieira. Eis uma das razões por que nunca escrevi antes "Cidade dos Arcebispos" e lhe preferi outras.

Seja como for, creio que conheci Fernando Beleza em 1982 – quando o seu restaurante, O Abade de Priscos, era então uma raridade. Ali escondido, num primeiro andar de uma praça famosa por coabitar com teólogos antigos e modernos, a sua sala de jan­tar ocupava um sobrado de madeira com louceiros e móveis com evocações domésticas – o serviço era ainda mais familiar, redondo, aplicado e cordato. E a comida, na época, uma novidade: caril de cama­rão, bacalhau gratinado, posta mirandesa, espetada em pau de louro (que Fernando Beleza ia buscar ao campo na altura certa) e o notável pudim. Regresso a espaços. Regresso já nem por causa da comida, ou dessa minha juventude que passou por Braga, ou de qualquer memória; acho que regresso porque me habituei ao lugar, às escadas de madeira que levam ao primeiro andar, à mesa do canto (junto a uma janela), à conversa do Fernando (que já foi editor, que guarda segredos, que tem história) e à lista clás­sica da casa. Continua o bacalhau gratinado (numa terra conhecida pelas suas "postas à bracarense", fritinhas e aceboladas), continua o caril de camarão, permanecem a alcatra açoriana (muito apreciável, mesmo para quem está habituado a comê-la na ilha Terceira), a galinha mourisca e os pezinhos de coentrada de magníficas e suculentas gelatinas, escorren­do dos ossinhos. A isto se acrescentam a feijoada de polvo (que nunca comi; desculpa, Fernando) e uma das notas superiores da casa – o cabrito em molho de salva, o que constitui um contraste perfeito entre o agridoce da erva e a carne de texturas salgadinhas. Além dos bifinhos gulosos, o Abade de Priscos apre­senta ainda, periodicamente, um prato de "presun­to em boa companhia", um clássico duriense da minha eleição, anotado nas melhores recolhas da região (há um texto quase ditirâmbico de Sarmento Pimentel sobre o assunto), e uma recente inovação que mistura lascas de carnes pecaminosas (coelho, galinha do campo, porco preto) com arroz de cogu­melos selvagens – onde há míscaros abundantes – e enchidos de Portalegre. Simplicidade absoluta nas sobremesas, onde se desafiam mutuamente o pudim do Abade de Priscos, um leite-creme queimado, o doce de requeijão com chocolate e uma mousse de chocolate.

Se a carta de vinhos é curta (mas tem o essencial), a salinha do restaurante eleva-me o espírito em noites de chuva, como aconteceu da última visita. É bom voltar.

À LUPA
Carta de vinhos: * *
Carta de digestivos: * *
Facilidade de acesso: * * *
Decoração: * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 30
Vinhos brancos: 10
Vinhos verdes e Alvarinhos: 5
Portos & Madeiras: 5
Uísques: 8
Aguardentes portuguesas: 9

Outros dados
Charutos: Não
Estacionamento: parques nas redondezas
Levar crianças: sim
Bengaleiro: sim
Reserva: aconselhável à noite e fim-de-semana
Preço médio: 18 euros
Cartões: Não aceita

ABADE DE PRISCOS
Praça Mouzinho de Albuquerque, n.º 71
4710-301 Braga
Tel. 253 276 650

in Revista Notícias Sábado – 11 Novembro 2006