janeiro 28, 2006

Árvores e apetite

A Carvalheira fica nos arredores de Ponte de Lima, rodeado de arvoredo romântico e de ar muito respeitável. O ar ajuda - depois de um jantar reconfortante que se transforma numa lição para o paladar.

Eu não devia confessar fraquezas destas. Há uma certa honorabilidade na crítica de restaurantes que a transforma numa disciplina superior, evidentemente, e não nos devemos poupar a esforços para a sua reabilitação. Mas estas coisas são flutuantes. O crítico de restaurantes deve ser discreto, deve manter em ordem a sua disponibilidade organoléptica (seja lá o que isso for) e, sobretudo, deve saber distinguir um confit de canard de uma embalagem do McDonald's.

Isso nem sempre acontece. Mas na paisagem deslumbrante de Ponte de Lima é muito mais fácil. O centro da vila é coisa para se visitar sempre, sobretudo naquela hora crepuscular em que as suas ruas transportam melancolias, mesmo à beira do rio. A mim, a hora crepuscular, além de evocar poesia, abre-me o apetite, esteja onde estiver. De modo que pela décima vez ai fui na direcção de Arcozelo, depois de uma sesta providencial, de fim-de-semana, em Vila Nova de Cerveira (onde voltarei em breve para subir a serra e almoçar). Um dos meus preconceitos, até agora não desmentido, prende-se com a ideia de que o Minho, e sobretudo o Alto Minho, é a região portuguesa onde melhor se come. Estou aberto a contraditório, mas não para já: antes, A Carvalheira, em Arcozelo, Ponte de Lima, uma casa recolhida entre folhagem, bom ar, ambiente de boa província. Um casarão simpático e acolhedor onde as mesas se estendem por algumas salas de boa profundidade, cobertas de toalhas e sem peraltices, rodeadas de estantes onde se alinham boas colheitas, simpáticos rótulos dos melhores vinhos (uma selecção de 260 tintos talvez seja convincente) e aguardando as entradas da ordem. São simples: pataniscas de bacalhau, aposta conservadora e honrada, muito boas - para acrescentar aos cogumelos com fumados, as favas com chouriço (escorrendo, tenrinhas, cozinhadas com vagar - e sem ervas!) e a um misto de enchidos e de fumados que fará as delícias de esfomeados - com uma alheira muito boa. Estas informações são, já, comoventes; porém, como nem só de comoções vive o homem (e muito menos a mulher), aproximam-se os pratos de sustância, encabeçados pelo bacalhau com broa. Avesso a utilizar o dicionário de sinónimos, vou chamar baca­lhau ao bacalhau - e este é um bacalhau excelente, bem escolhido e bem cozinhado, com a pele no lugar certo e o azeite sem exageros. Nada a dizer.

Nesta altura, aliás, silêncio quase absoluto para que se dê entrada ao cabrito no forno, tostado e tentador, com as costelinhas quase caramelizadas e a pele funcionando como uma cobertura de gelatinas que se soltam do seu tempero caseiro, perfumado, aliviado de artifícios. Devo dizer-lhes que é uma obra de arte. Até esqueço o arroz. Os mais devoradores debicam agora no pernil, com uns grelos saturados e exangues - e umas batatinhas apresentadas como se viessem do ourives, douradas por fora, mas cremosas por dentro. Uma palavra sobre os grelos: em restaurantes destes há mais respeito pelos vegetais do que nos restaurantes vegetarianos, onde não conhecem os legumes senão pelo nome - aqui, os grelos salteados, ou migados, são tratados como merecem. Tenho uns amigos que arrancam do Porto, em peregrinação, para devorar o pernil do A Carvalheira: pelo caminho ocupam mais de vinte minutos com a descrição dos seus sucos e texturas. Ficam muito excitados, e compreendo-os, mas protejo-me. Para concluir a ronda, vem o arroz de pato. Não é das minhas preferências e classifico-o abaixo da expectativa, esbranquiçado; espero mudança na sua receita, mas compenso-o com a religiosa evocação do leite-creme queimado e com a pêra borrachona, material delicado e elegante, muito familiar (alem disso, apenas o bolo de bolacha, a maçã assada e umas rabanadas de época, nadando sobre um molho que se foi transformando em caramelo).

Ao ser devolvido à Estrada Nacional, depois de passar pela violenta lista de digestivos, perfumada por um bom café e um charuto, resmunguei, mas achei que o mundo estava mais perfeito. Não admira.

À Lupa
Vinhos:* * *
Digestivos: * * * * *
Acesso: * * *
Decoração: * * * *
Serviço: * * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Tintos: 260
Brancos: 25
Verdes: 25
Aguardentes: 40
Portos e Madeiras: 60
Cervejas: 4

Outros dados
Charutos: Sim
Estacionamento: Parque privativo
Levar Crianças: Sim
Bengaleiro: Sim
Reservas: Aconselhável
Preço médio: 20 Euros

A Carvalheira
Antepaço-Arcozelo
4990-231 Ponte de Lima
Tel: 258 742316
Encerra à 2.ª feira

in Revista Notícias Sábado - 28 Janeiro 2006