janeiro 22, 2006

Poeira, 1.

Havia poeira, naqueles dias de Inverno e sol. Barraquinhas de churros, farturas, algodão doce e as primeiras pipocas que chegavam à cidade. A evocação é infantil, pré-adolescente, mas junta-se à das barraquinhas de matraquilhos, tiro ao alvo, ruído do poço da morte, carros-de-choque e várias juke-boxes instaladas ao longo da avenida. E soldados vestidos com farda completa, verde-azeitona, saídos do Batalhão de Caçadores 10, passeando de braço dado com vagas namoradas sazonais, promessas de Outono, de Inverno, da Primavera ameaçada. E havia poeira dançando entre os plátanos. E moedas de 1$00 trocadas para produzirem canções como aquelas, hinos luminosos e inesquecíveis, vozes de um portento chamado Nelson Ned. As juke-boxes competiam. Nelson Ned. Tudo passou, tudo passará. Nelson Ned (o de «Domingo à tarde») e Nilton César (o de «Espere um pouco, um pouquinho, mais»). E Lindomar Castilho. E Teixeirinha. Havia uma versão unplugged de «Sentado à beira do caminho» (mas nós não sabíamos o que era «unplugged» no país que cantava acompanhado à guitarra e à viola), que ele tinha composto para Roberto Carlos. Os meus ouvidos lembram-se ligeiramente de Bartó Galeno (que cantava «No toca fitas do meu carro») e de Marcos Roberto ou Dori Edson. As canções de Cauby Peixoto também ecoavam nesses recintos de feira. As raparigas passeavam com os militares do Batalhão de Caçadores 10, os que iriam depois para Bafatá ou para a Baixa do Cassanje; eram pobres, modestas, vestiam casacos de malha e saias de xadrez, quando nós recusávamos as calças à boca de sino. As moedas de 1$00 (um escudo) davam para uma canção apenas, mas havia o bónus de três canções por 2$50, com o prémio suplementar de uma partida de matraquilhos. Ao fim-de-semana, elas passeavam também com os empregados das lojas de fazenda, das mercearias e das repartições, e ouviam Gabriel Cardoso cantando «O autocarro do amor» quando nós fugíamos para casa a ouvir Songs from the Wood, os discos de Van Der Graaf, o que restava da guitarra de Deep Purple, os sintetizadores dos Emerson Lake & Palmer, dos Uriah Heep, a guitarra dos Slade (a de Dave Hill a acompanhar «I won't laugh at you when you boo-hoo-hoo coz I luv you, yeah, I can turn my back on the things you lack coz I luv you»). Eu lembro Songs from the Wood porque foi um disco que mudou uma das minhas primaveras, antes ou durante a revolução, não recordo. Flautas. Guitarras. Vozes vindas dos pântanos. Ofereceram-me o disco juntamente com duas cassetes dos Fairport Convention. Não tive culpa. Mas eu não tinha culpa de haver canções de Nelson Ned a sair das juke-boxes da avenida. Na altura eu ouvia o disco que mudaria a minha vida, os Temptations cantando «Papa Was a Rolling Stone» («Papa was a rollin' stone, wherever he laid his hat was his home») e, depois, «Just my Imagination» («Each day through my window I watch her as she passes by, I say to myself you're such a lucky guy, to have a girl like her...»). Sim, eu depois falo-vos de Harold Melvin & The Bluenotes, de Gladys Knight & The Pips, de Barry White, de Marvin Gaye ou Tammi Terrell. Mas eu lembro-me é dessa poeira, dos casais atravessando a avenida ao som António Teixeira cantando «Adeus Guiné, serás sempre Portugal» e de Nelson Ned cantando «Tudo Passará». E nunca pude, na verdade, rir-me de Nelson Ned nem de Nilton César ou Lindomar Castilho. Quando a bossa nova começava a chorar, do lado de lá do mar (e nós não sabíamos), nenenhén, nenenhén, os casais tristes ouviam com alegria aquela inocência malvada de «Dois num só coração» ou de «A namorada que sonhei».

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