janeiro 30, 2006

Melancolia em Verín, não sei porquê




Almôndegas, pequenas, perfeitas, redondas – comidas a um balcão de Espanha, enquanto a tarde cai.





Na minha Galiza quase natal, quase pré-adolescente, em Verín, havia um pequeno boteco, El Meson de La Chispa, onde uma vez por quinzena - diga-mos que fim-de-semana sim, fim-de-semana não - íamos em peregrinação.

Foi lá que aprendi a alegria de comer. Eu conhecia o prazer e o apetite; tinha-os aprendido com a cozinha da minha avó, no Douro, uma cozinha inventiva, natural, simpática, comovente, cheia de ternuras e daquela abundância das casas modestas mas acolhedoras. Mas a alegria, a alegria devastadora, aquela que nos leva, ainda às portas da adolescência, a desejar a chegada “daquele dia” em que se entra no restaurante minúsculo, cheio de fumo de tabaco e de cheiro de fritos, de reservados obscuros, de mesas de madeira onde se tinham acumulado quase todas as moléculas do mundo, de bancos oscilantes que nunca se quebravam, essa alegria eu conheci-a no Meson de La Chis­pa, de Verín, na Galiza.

Foi ali que deixei de ter medo da comida vendo como, do outro lado do balcão, se fritavam calamares, se temperavam pinchos com pedacinhos de carne escrupulosamente apimentados, se cortavam rodelas de pulpo de feira retirado de panelões de ferro que tinham fervido junto da lareira, se colhiam empanadas de tabuleiros que saíam de um forno de lenha. Foi lá que bebi o meu primeiro vino de ribeiro. Foi lá que comi as minhas primeiras almôndegas. Anos depois, perdido no meio de uma tarde de Inverno, sentei-me num solitário Meson de La Chispa que tinha perdido clientela miseravelmente roubada pelas casas de hamburguesas), a uma mesa igualmente solitária, picando o mais delicioso polvo da minha infância passada, salpicado de azeite, grãos de sal e colorau. Recordei tudo. Quase tudo. As almôndegas. Um retrato de Julio Iglesias, vestido de jogador do Real Madrid, pendurado na zona dos reservados. Um cartaz anunciando corridas de toiros em Salamanca. Um retrato do castelo de Monterrey datado de 1971. Um outro retrato de Di Steffano, também com a camisa do Real. Um quadro com um provérbio sobre a arte de beber vinho. Um pequeno anuncio a cerveja Estrella Galicia. E havia ainda aqueles cinzeiros de plástico ou de porcelana, com publicidade a Cinzano, a Estrella ou aos chorizos Revilla. E havia o habi­tual Voz de Galicia sobre uma mesa, aberto na seccão de deportes, enquanto a radio passava uma cancão irritante de um irritante Joaquin Sabina. Já me esquecia que foi no Me­son de La Chispa que ouvi cancões fabulosas, de que me envergonho, de melancolias de Amancio Prada a barcarolas de Maria Ostiz. Nessa tarde bebi vinho branco Monterrey, fumei Condal e pedi un cafe con unas gotitas, homenagem ao café preparado numa cafeteira velha perfumado com aguardente de Ginzo de Limia.

Mais tarde, em casa, preparei as almôndegas à sorte, ao azar, à vontade. Misturei a carne picada (500 g) com dois dentes de alho, meia cebola, uns grãos de pimenta, uma gema de ovo, um nadinha de salsa e duas fatias de pão caseiro demolhado. Amassei a mistura durante um bocado e deixei descansar; meia hora depois, formei as almôndegas, bolinhas perfeitas, ternas, evanescentes, passando-as depois por pão ralado. Enquanto bebia uma Estrella (que trouxe de Verín) preparei um refogado com cebola em rodelas finas, alho e lou­ro; juntei-lhe as almôndegas, deixei que ganhassem cores e acrescentei quatro tomates muito maduros, sem pele e cortados aos pedacinhos. Um copo de vinho branco. Deixei ferver, mexi, esperei, juntei três medidas de agua, um ramo de salsa e abandonei o tacho durante meia hora, cozinhando e fervilhando em fogo lento. Quando regressei, temperei de sal, acrescentei uma malagueta, salsa e sumo de meio limão, rectificando o caldo com um pouco de agua quente. Afastei-me mais um quarto de hora, voltei para retirar a salsa e o louro.

Melancolia, nem sei porquê. Nem sei porquê as almôndegas, que comi na minha primeira barra espanhola.

Ingredientes
Para as almôndegas:
+ 500 g de carne picada
+ 2 fatias demolhadas e espremidas de pão caseiro sem côdea
+ 1 c. sobremesa de salsa picada
+ Pimenta
+ 2 dentes de alho
+ Meia cebola picada
+ 1 gema de ovo
+ Pão ralado

Para preparação:
+ 1 cebola media
+ 2 dentes de alho
+ Azeite
+ 2 folhas de louro
+ 4 tomates maduros
+ 1 copo de vinho branco
+ Meio limão
+ 1 malagueta
+ 1 ramo de salsa


in Atlas de Cozinha – Revista Volta ao Mundo – Fevereiro 2006