O estalinismo susceptível
Jerónimo de Sousa, que é um homem cordato e simpático, ficou chocado com a simples invocação de Álvaro Cunhal feita por Manuel Alegre. Recordo ao leitor que Manuel Alegre estava diante de um dos símbolos do fascismo e do regime de terror que permitia as prisões políticas, o forte de Peniche. Álvaro Cunhal esteve aí preso. Eu não tenho simpatia pelas ideias do antigo secretário-geral do PCP, mas invocarei o seu nome quantas vezes me apetecer, em campanha eleitoral ou fora da campanha eleitoral, em que circunstâncias eu julgar adequado e não pedirei autorização. Nem Jerónimo de Sousa ou qualquer dirigente do PCP me podem proibir de pronunciar este nome Álvaro Cunhal. Nem este nem, felizmente, qualquer outro, ao contrário do tempo em que não podíamos, nem eu nem o leitor, pronunciar certos nomes. Portanto, e que fique claro, eu, que não tenho simpatia pelas ideias políticas de Álvaro Cunhal, citarei o seu nome diante do Forte de Peniche ou onde me apetecer. Jerónimo de Sousa, e uma corte de homens carregados de moral, ética e património histórico, investiram contra Manuel Alegre por esse facto. Eu saio a defender Manuel Alegre e seja quem for que alguém queira calar. Portugal está cheio de velhos e de novos estalinistas.
Outro coro de gente vergada à moral, à ética e ao património histórico, apareceu a criticar Cavaco porque em Grândola se cantou "Grândola, Vila Morena", durante a visita que o candidato fez à vila alentejana. Escândalo. Não percebo, senão à distância, a virgindade ofendida. Ora, "Grândola, Vila Morena" foi um dos símbolos do 25 de Abril e, portanto, essa memória é comum e colectiva. Também é minha. Não admito que ma roubem; têm de me pedir licença.
Ora há aqui um fenómeno risível e disparatado o dos estalinistas renovados - eles são os proprietários da ética, da moral, do 25 de Abril, da República, do património da Presidência, da virtude, da virgindade, do humanismo, das canções, do Forte de Peniche, do republicanismo, da Constituição, da verdade, do Prémio Nobel da Literatura, do sentido de Estado, do bom comportamento, do bom gosto, do bom senso, do Hino, de Alves Redol, dos Jerónimos, da cultura ou, provavelmente, da verdade. Na verdade, apenas reproduzem o seu medo dos outros e a ideia de respeitinho que gostavam de ver estendida a todos os ramos da política, do jornalismo e do debate. Eles queriam um país desenhado a régua e a esquadro, de onde fossem expulsos ou onde fossem, pelo menos, silenciados, aqueles que não cabem na sua ideia de perfeição.
Esse tique, suave em alguns, escandalizado noutros, e apenas disparatado em certas almas, é uma perversão do debate político entre nós. Apropriando-se do 25 de Abril, do discurso sobre o "estado social", da "cultura" e da noção de "ética", gostariam de um país onde pudessem deter toda a verdade - um país silencioso e respeitador, onde todos fossem obrigados a pedir a bênção antes de tomar a palavra.
A ideia de que Manuel Alegre não pode citar os nomes que entender e em que circunstâncias entender, ou a de que os apoiantes de Cavaco Silva não podem, em Grândola, cantar "Grândola, Vila Morena", é mais do que absurda. Portugal mantém esses tiques ridículos. De vez em quando, aparece um desses pequenos sacerdotes nos jornais o senhor não pode falar sobre esse assunto; fulano não deve pronunciar-se sobre o outro assunto. Esta vontade de censurar, de proibir e de esganiçar a voz em tom escandalizado, é congénita a parte da alma portuguesa. É um estalinismo demasiado susceptível. E é uma pena.
Jornal de Notícias - 12 Janeiro 2006
Outro coro de gente vergada à moral, à ética e ao património histórico, apareceu a criticar Cavaco porque em Grândola se cantou "Grândola, Vila Morena", durante a visita que o candidato fez à vila alentejana. Escândalo. Não percebo, senão à distância, a virgindade ofendida. Ora, "Grândola, Vila Morena" foi um dos símbolos do 25 de Abril e, portanto, essa memória é comum e colectiva. Também é minha. Não admito que ma roubem; têm de me pedir licença.
Ora há aqui um fenómeno risível e disparatado o dos estalinistas renovados - eles são os proprietários da ética, da moral, do 25 de Abril, da República, do património da Presidência, da virtude, da virgindade, do humanismo, das canções, do Forte de Peniche, do republicanismo, da Constituição, da verdade, do Prémio Nobel da Literatura, do sentido de Estado, do bom comportamento, do bom gosto, do bom senso, do Hino, de Alves Redol, dos Jerónimos, da cultura ou, provavelmente, da verdade. Na verdade, apenas reproduzem o seu medo dos outros e a ideia de respeitinho que gostavam de ver estendida a todos os ramos da política, do jornalismo e do debate. Eles queriam um país desenhado a régua e a esquadro, de onde fossem expulsos ou onde fossem, pelo menos, silenciados, aqueles que não cabem na sua ideia de perfeição.
Esse tique, suave em alguns, escandalizado noutros, e apenas disparatado em certas almas, é uma perversão do debate político entre nós. Apropriando-se do 25 de Abril, do discurso sobre o "estado social", da "cultura" e da noção de "ética", gostariam de um país onde pudessem deter toda a verdade - um país silencioso e respeitador, onde todos fossem obrigados a pedir a bênção antes de tomar a palavra.
A ideia de que Manuel Alegre não pode citar os nomes que entender e em que circunstâncias entender, ou a de que os apoiantes de Cavaco Silva não podem, em Grândola, cantar "Grândola, Vila Morena", é mais do que absurda. Portugal mantém esses tiques ridículos. De vez em quando, aparece um desses pequenos sacerdotes nos jornais o senhor não pode falar sobre esse assunto; fulano não deve pronunciar-se sobre o outro assunto. Esta vontade de censurar, de proibir e de esganiçar a voz em tom escandalizado, é congénita a parte da alma portuguesa. É um estalinismo demasiado susceptível. E é uma pena.
Jornal de Notícias - 12 Janeiro 2006
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