O estaleiro
Se não fossem as presidenciais, haveria outros assuntos para tratar esta semana: as escutas telefónicas; a ida, amanhã, do procurador-geral da República ao Parlamento; a nomeação de Mafalda Almeida, uma portuguesa de 23 anos, para o comando da GNR de Pombal; os estudos sobre a desigualdade social em Portugal, e até o início das comemorações dos 50 anos da Gulbenkian em Portugal.
É muito provável, no entanto, que estas eleições sejam demasiado importantes para o final de um ciclo político e cultural português. E será tão mais significativa a mudança quanto mais natural recomece a vida na segunda-feira, o que significa que este novo ciclo foi já, afinal, inaugurado na cabeça dos portugueses. Também por isso, é estranho que parte dos candidatos à Presidência insista em parlamentar com o passado, em ajustar contas com o passado, em esgrimir com o passado, sem se dar conta de que o processo democrático português leva 30 anos de avanços e de recuos, mas que a sua "normalização" não significa empobrecimento, nem banalização, nem entristecimento. Pelo contrário simboliza a sua idade madura, a normalidade com que os eleitores e os cidadãos (uma coisa sem outra é impossível) encaram mudanças inadiáveis ou continuidades insuspeitas. E a idade madura é demasiado importante para a deixarmos à solta. Ela é a nossa idade.
Há, na campanha política, evidentemente, um desejo de euforia, de apelo permanente a mudanças de interlocutores e de projectos. Simplesmente, aquilo que os analistas políticos encaram como a mudança "nas suas vidas" (de comentadores) não significa, realmente, benefício na vida das pessoas concretas. Um exemplo? O modo como os comentadores assinalam coisas do género "Fulano faz uma campanha notável." Na verdade, a ideia de "campanha notável" significa muito mais encenação do que propostas exequíveis e aceitáveis, mais ruído do que substância, mais poeira do que outra coisa. Fazer uma "campanha eleitoral notável" significa aparecer mais na televisão, transportar capitais de simpatia ou de magnetismo pessoal - características que emprestam brilho a um herói das multidões, mas que acrescentam e multiplicam desilusão depois das eleições.
É preferível encarar a política como o domínio do realizável. Esta proposta, que muitos leitores se hão-de apressar a rotular de conservadora ou conformista, é realmente inovadora. A mais inovadora, aliás, num país que deixou banalizar a corrupção e o laxismo, e alastrar o provincianismo cultural. Não se trata de retirar o sonho do domínio da política; trata-se, antes, de subtrair a política ao exclusivo domínio do sonho e da moral - e de a ligar ao mundo das pessoas. Portugal, bem vistas as coisas, está um estaleiro. Os últimos dois anos, em vez de terem contribuído para reorganizar esse estaleiro, em vez de se terem traduzido num aumento de exigência à nossa disponibilidade para sermos portugueses (na grandeza e na pequenez, na euforia e no quotidiano) e ao nosso sentido de responsabilidade, deixaram o país mergulhado em ressentimentos e fugas. Votar num candidato presidencial, nestas circunstâncias, não é votar num símbolo mas escolher um diagnóstico o mais correcto possível da situação em que nos encontramos. Se, na segunda-feira encararmos o resultado das eleições presidenciais com esse pressentimento de normalidade, poderemos dizer que este ciclo político está em vias de ser encerrado. Lamento, mas a política também quer dizer isso.
P.S. Pela primeira vez, apoiei publicamente um candidato presidencial, Cavaco Silva. Avisei os leitores previamente, como tinha de o fazer. Espero que ele ganhe as eleições. Mas o problema de Portugal não é o de saber quem ganha. O problema, mesmo, é o país.
Jornal de Notícias - 19 Janeiro 2006
É muito provável, no entanto, que estas eleições sejam demasiado importantes para o final de um ciclo político e cultural português. E será tão mais significativa a mudança quanto mais natural recomece a vida na segunda-feira, o que significa que este novo ciclo foi já, afinal, inaugurado na cabeça dos portugueses. Também por isso, é estranho que parte dos candidatos à Presidência insista em parlamentar com o passado, em ajustar contas com o passado, em esgrimir com o passado, sem se dar conta de que o processo democrático português leva 30 anos de avanços e de recuos, mas que a sua "normalização" não significa empobrecimento, nem banalização, nem entristecimento. Pelo contrário simboliza a sua idade madura, a normalidade com que os eleitores e os cidadãos (uma coisa sem outra é impossível) encaram mudanças inadiáveis ou continuidades insuspeitas. E a idade madura é demasiado importante para a deixarmos à solta. Ela é a nossa idade.
Há, na campanha política, evidentemente, um desejo de euforia, de apelo permanente a mudanças de interlocutores e de projectos. Simplesmente, aquilo que os analistas políticos encaram como a mudança "nas suas vidas" (de comentadores) não significa, realmente, benefício na vida das pessoas concretas. Um exemplo? O modo como os comentadores assinalam coisas do género "Fulano faz uma campanha notável." Na verdade, a ideia de "campanha notável" significa muito mais encenação do que propostas exequíveis e aceitáveis, mais ruído do que substância, mais poeira do que outra coisa. Fazer uma "campanha eleitoral notável" significa aparecer mais na televisão, transportar capitais de simpatia ou de magnetismo pessoal - características que emprestam brilho a um herói das multidões, mas que acrescentam e multiplicam desilusão depois das eleições.
É preferível encarar a política como o domínio do realizável. Esta proposta, que muitos leitores se hão-de apressar a rotular de conservadora ou conformista, é realmente inovadora. A mais inovadora, aliás, num país que deixou banalizar a corrupção e o laxismo, e alastrar o provincianismo cultural. Não se trata de retirar o sonho do domínio da política; trata-se, antes, de subtrair a política ao exclusivo domínio do sonho e da moral - e de a ligar ao mundo das pessoas. Portugal, bem vistas as coisas, está um estaleiro. Os últimos dois anos, em vez de terem contribuído para reorganizar esse estaleiro, em vez de se terem traduzido num aumento de exigência à nossa disponibilidade para sermos portugueses (na grandeza e na pequenez, na euforia e no quotidiano) e ao nosso sentido de responsabilidade, deixaram o país mergulhado em ressentimentos e fugas. Votar num candidato presidencial, nestas circunstâncias, não é votar num símbolo mas escolher um diagnóstico o mais correcto possível da situação em que nos encontramos. Se, na segunda-feira encararmos o resultado das eleições presidenciais com esse pressentimento de normalidade, poderemos dizer que este ciclo político está em vias de ser encerrado. Lamento, mas a política também quer dizer isso.
P.S. Pela primeira vez, apoiei publicamente um candidato presidencial, Cavaco Silva. Avisei os leitores previamente, como tinha de o fazer. Espero que ele ganhe as eleições. Mas o problema de Portugal não é o de saber quem ganha. O problema, mesmo, é o país.
Jornal de Notícias - 19 Janeiro 2006
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