janeiro 29, 2006

Sobre o fim do mundo


O fim do mundo fica longe de mais. Muitas vezes temos a tentação de falar dele ou de imaginar um ponto onde tudo acaba. Não é apenas o sonho ou o pesadelo de marinheiros antigos que enfrentavam o mar à espera do grande precipício. É o nosso sonho e o nosso pesadelo. O fim do mundo é a nossa obsessão, na verdade. Quando eu comecei a fazer o inter-rail, o fim do mundo ficava naquela linha imprecisa onde começava o circulo polar árctico e a linha de abetos se cruzava com a da neve, a da tundra, a do sol que se transformava numa cinza desbotada escondida nas florestas. Também ficava para lá de Tristão de Cunha, é verdade, mas esse era um fim do mundo demasiado distante. E ficava para lá do estreito de Magalhães, E ficava para lá das cores do Índico. Havia, portanto, uma geografia, uma referência e um limite.

Imagino a missão que o rei inglês destinou a Thomas Cook que, parece, foi encarregado de descobrir que o mundo acabava em determinado pon­to. Essa ideia de descobrir o vazio, o fim de tudo, parecia apaixonante mas não resultou: o mundo continuava para lá das primeiras tempestades do Grande Sul, não existia o grande precipício sobre o nada.

Nós, europeus, temos muitas vezes essa tentação fatal de encontrar um fim do mundo. Não um fim do mundo real, mas uma geografia que nos devolva a uma sensação de plenitude e de confiança. A ultima vez que senti ou pressenti es­sa sensação foi, exactamente, no Fim do Mundo. A reportagem desse encontro foi publicada na Volta ao Mundo, mas, na verdade, começou pelo próprio voo entre Buenos Aires e Ushuaia. A primeira sensação foi de estranheza e, confesso, de desilusão: o avião estava cheio. Uma centena de turistas preparava-se para destruir, em questão de horas, todas as minhas imagens sobre o fim do mundo, ou seja, a Terra do Fogo, o território a sul do estreito de Magalhães, a passagem para a Antárctida. Felizmente que houve esse pormenor uma escala intermédia, daí a uma hora ou duas - uma paragem em Bariloche, onde três quartos da população turística saiu para as estâncias de neve. Os vinte passageiros, ou menos, que seguiram para Ushuaia constituíam já um número aceitável como companhia de viagem para o fim do mundo.

Dois ou três dias depois, rente a Puerto Williams, a cidade chilena do outro lado do canal Beagle, eu imaginava a primeira viagem de Charles Darwin à proa do navio, enfrentando os ventos gelados e a escuridão austral dos mares do Sul. A paisagem não era desagradável: verdejante, de um lado; vermelha e cor de fogo do outro; nua e árida à medida que caminhávamos para o Sul, empurrados pelo vento ou em busca de uma historia para contar, como acontece com um jornalista, onde quer que ele esteja. Mas, na verdade, não havia nenhuma historia para contar - havia aquele silêncio só interrompido pelo vento, pelo ruído do mar e pela passagem da neve rente aos glaciares. As duas cidades mais a sul do mundo, Ushuaia e Puerto Williams, eram cidades onde não se passava nada senão a chegada esporádica de um avião ou a saída ou entrada de um navio que se demorava apenas o tempo necessário. Expliquei a mim próprio que aquilo era mesmo o fim do mundo. Estava escrito na paisa­gem, estava escrito na minha memória daqueles dias. Os viajantes antigos (que não eram turistas mas viajantes), que não procuravam a pacificação nem a plenitude, mas apenas a aventura, a perdição ou, em alguns casos de loucura superlativa, a fortuna, tinham encontrado ali o lugar onde todas as esperanças acabavam. Mas onde nada poderia persegui-los; nem uma memória, uma carta, um apelo da família. Senti isso ao dobrar os pequenos promontórios de Lapataia, os seus caminhas verdes.

Sei hoje que esse meu fim do mundo particular, o canal por onde passou Darwin e que Fernão de Magalhães soube evitar e antecipar, não é o lugar ideal para férias. Não tem o luminoso mar que procuramos uma vez por ano. Nem a facilidade dos lugares onde há hotéis, estradas, praias com bom acolhimento. Mas é o Iugar onde nos defrontamos com o silêncio total, absoluto, profundo, vin­do do final da terra e não do seu centro. Se alguém tenciona perceber como é o fim do mundo, eu recomendaria Ushuaia e o que fica para lá de Ushuaia.

in Outro hemisfério – Revista Volta ao Mundo – Fevereiro 2006