Anthony Bourdain é um dos meus autores preferidos – e a preferência não é, propriamente dita, literária. Mas podia ser, uma vez que li com grande prazer Um Osso na Garganta, um romance policial passado nas cozinhas e copas de alguns restaurantes nova-iorquinos (do lado de lá do rio, bem vistas as coisas, já em Jersey, como acontece com Os Sopranos). Refiro-me, antes, aos seus dois excelentes livros sobre cozinha: Confidential Kitchen e A Cook's Tour, traduzidos como Cozinha Confidencial e Em Busca do Prato Perfeito. Um Cozinheiro em Viagem.
Bourdain não é o chef encartado que se delicia com espumas & cozinha molecular, uma espécie de moda recente, produto da tecnologia; pelo contrário, ele procura na cozinha a revelação de uma arte que reuniu os seres humanos em torno da ideia de sobrevivência, de prazer e de felicidade. Há um pouco de jogo, certamente (a cozinha de espumas & moléculas é essencialmente jogo e divertimento), mas o que Bourdain faz é cozinha tradicional sem medo da morte. Por isso, os seus ingredientes são ainda o azeite, a manteiga, o vinho, os caldos espessos e olorosos, a carne e o peixe, o bacalhau salgado ou o açúcar; e os resultados são os vegetais cozinhados (e não crus), as carnes de que nada se desperdiça, os fritos que nos reenviam à infância, os doces de caldas luminosas. Em A Cook's Tour, livro-delírio, Bourdain viaja através do México, da França, de Inglaterra, da Rússia, do Vietname, do Japão, de Portugal ou do País Basco para tentar encontrar um fio de ligação entre o nosso desejo de coisas suculentas e o que se pode obter de pacificação depois de um almoço ou de um jantar quase perfeitos. Encontra-o por diversas vezes – em Portugal, logo a abrir, uma vez que o seu sócio e patrão no restaurante nova-iorquino Les Halles é um português de Amarante, José Meirelles, que enche os corredores da copa com caras de bacalhau, tripas, presuntos, enchidos de Trás-os-Montes. Encontra-o no País Basco, em jantares com os chefs mais divertidos da Europa, bebendo dúzias de garrafas de vinho e cantando canções de que não conhece o significado ("Osasuna! Osasuna!"); ou no Japão, comendo em restaurantes soberbos nas montanhas ou em botecos mal iluminados dos portos, aguardando a chegada de o-toro, o atum dos atuns; ou no Vietname, no meio dos campos, em apartamentos clandestinos ou em ruas cheias de pequenas roulottes carregadas de ingredientes desconhecidos.
Num mundo superpovoado de monumentos silenciosos que a nossa vaidade de turistas procura como uma espécie de pórtico para o conhecimento do mundo, Bourdain mostra-nos a outra face desse conhecimento. Não, não julgue o leitor que se trata de um roteiro de restaurantes no mundo inteiro, geralmente caros e atrevidos – pelo contrário, são amostras da vida quotidiana pelo mundo fora. Esse catálogo de restaurantes e das suas ementas pode ser encontrado tanto em Nova Iorque como em Lisboa, no Porto ou, vá lá, no Algarve. Mas "o prato perfeito", como diz Bourdain, só pode ser o resultado de uma pesquisa em ruas tortuosas e bairros populares, tanto em Marraquexe como em Bilbau, tanto numa quinta de Amarante como num campo de arroz no Vietname (pessoalmente, não recomendo a experiência, mas o leitor que arrisque). A grande cozinha, tal como a cozinha de espumas & moléculas acaba por ser idêntica, com ligeiras variações regionais, em todo mundo. O que é desigual são as formas de nos mantermos longe das dietas e próximos da terra. Num boteco do Rio, numa velha varanda de Goa ou num terraço escondido em Buenos Aires – não só é mais barato, digamos, como é a verdadeira descoberta. Essa é a verdadeira cozinha confidencial.
in Outro Hemisfério - Revista Volta ao Mundo - Dezembro 2008Etiquetas: Volta ao mundo