Não sei se o leitor conhece
Finlandia (o Poema Sinfónico, Opus 26, de 1899), de Sibelius – mas é uma das minhas peças preferidas. Ouço-a mais vezes porque redescubro nela a respiração das florestas.
Se há uma coisa que me assusta na biografia de Sibelius, mais do que em outros compositores, é o grande silêncio dos seus últimos trinta anos de vida (morreu em 1957). Durante esse período compôs pouco, tocou sofrivelmente e escutou muita música. Mas o brilho irreversível de Finlândia permanece na minha vida como uma recordação da madrugada, no meio de uma viagem de comboio entre Helsínquia e Rovaniemi. Uma música no meio da madrugada explica-se bem, sobretudo se há nevoeiro, aquele que poisa sobre todas as árvores ao longo do caminho que leva ao Norte e ao círculo polar.
Rovaniemi, na verdade, é uma espécie de fronteira com a proximidade do Árctico, uma cidade desenhada a régua, esquadro e transferidor pelo génio de Alvar Aalto, o seu arquitecto (que nasceu um ano antes de Sibelius compor
Finlandia) - mas muito distante do ambiente pacificador da Finlândia que o leitor encontra noutras páginas [48-61] desta edição da Volta ao Mundo, entre lagos e enseadas ocultas. Rovaniemi é o coração da Lapónia finlandesa, com as suas estradas onde é quase sempre Inverno ou Primavera (a ruska é muito breve aqui: trata-se de um período fugaz de uma a duas semanas durante as quais as folhas das árvores ficam douradas e avermelhadas antes de caírem e desaparecerem com o vento do Norte), as suas breves colinas, as casas de madeira, as pistas de terra no meio das florestas.
Tudo na Finlândia, sem excepção, me lembra as florestas. Entrei na Finlândia pelo Báltico, de barco; entrei pelo Norte, vindo da Noruega (de boleia com Jimmy Burns, um canadiano que andava a pesquisar ouro no cabo Norte, nas imediações de Honningsväg); entrei pelo pequeno golfo da Suécia, depois de uma viagem que queria imitar o voo dos patos de Selma Lagerlöf (em A Viagem de Nils Holgersson). De todas as vezes deparei com as grandes florestas, com aquela tranquilidade das árvores que resistem ao tempo e aos homens — acho que foi o país onde aprendi a amar as florestas, nos bosques que levam a Kuopio, a Joensuu e à Carélia, na fronteira de Muonio ou nas manchas de água de Tampere.
O que hoje conhecemos da Finlândia deve-se (além da sua indústria e tecnologia) ao famoso «milagre finlandês», uma soma de dados que inclui o facto de o país ocupar o primeiro lugar nos estudos de matemática, de ser a nação menos corrupta do mundo ou de se situar no topo do índice de desenvolvimento humano das Nações Unidas. Porém, antes de cobiçar a Finlândia do «milagre finlandês» – essa miragem que leva alguns idiotas do Sul da Europa a pensar que basta copiar o sistema de ensino finlandês —, o leitor deve pensar na complexidade da geografia: eles têm frio, têm neve, têm noites fatais e quase eternas, têm uma disciplina luterana que os leva a poupar, a serem moderados nos gastos e honestos nas relações humanas. Eles pagaram esse preço, juntamente com o da guerra, o da invasão nazi, o da privação e o do isolamento: o de terem pertencido à coroa sueca e ao império russo. Admiro-os muito, aos finlandeses – são o povo das florestas.
Quando ouço
Finlandia, de Sibelius, não ouço nenhum «milagre finlandês»: é a pura respiração das florestas que atravessa o espaço. Faça essa experiência, quando chegar lá.
in Outro Hemisférios – Revista Volta ao Mundo - Abril 2008Etiquetas: Volta ao mundo