abril 05, 2008

A respiração das florestas

Não sei se o leitor conhece Finlandia (o Poema Sinfónico, Opus 26, de 1899), de Sibelius – mas é uma das minhas peças preferidas. Ouço-a mais vezes porque redescubro nela a respira­ção das florestas.

Se há uma coisa que me assusta na biografia de Sibelius, mais do que em outros compositores, é o grande silêncio dos seus últimos trinta anos de vida (morreu em 1957). Durante esse perío­do compôs pouco, tocou sofrivelmente e escutou muita música. Mas o brilho ir­reversível de Finlândia permanece na minha vida como uma recordação da madrugada, no meio de uma viagem de comboio entre Helsínquia e Rovaniemi. Uma música no meio da madruga­da explica-se bem, sobretudo se há ne­voeiro, aquele que poisa sobre todas as árvores ao longo do caminho que leva ao Norte e ao círculo polar.

Rovaniemi, na verdade, é uma es­pécie de fronteira com a proximidade do Árctico, uma cidade desenhada a ré­gua, esquadro e transferidor pelo génio de Alvar Aalto, o seu arquitecto (que nasceu um ano antes de Sibelius com­por Finlandia) - mas muito distante do ambiente pacificador da Finlândia que o leitor encontra noutras páginas [48-61] desta edição da Volta ao Mundo, entre lagos e enseadas ocultas. Rovaniemi é o coração da Lapónia finlande­sa, com as suas estradas onde é quase sempre Inverno ou Primavera (a ruska é muito breve aqui: trata-se de um pe­ríodo fugaz de uma a duas semanas du­rante as quais as folhas das árvores ficam douradas e avermelhadas antes de caí­rem e desaparecerem com o vento do Norte), as suas breves colinas, as casas de madeira, as pistas de terra no meio das florestas.

Tudo na Finlândia, sem excepção, me lembra as florestas. Entrei na Fin­lândia pelo Báltico, de barco; entrei pe­lo Norte, vindo da Noruega (de boleia com Jimmy Burns, um canadiano que andava a pesquisar ouro no cabo Norte, nas imediações de Honningsväg); entrei pelo pequeno golfo da Suécia, depois de uma viagem que queria imitar o voo dos patos de Selma Lagerlöf (em A Viagem de Nils Holgersson). De todas as vezes deparei com as grandes florestas, com aquela tranquilidade das ár­vores que resistem ao tempo e aos ho­mens — acho que foi o país onde aprendi a amar as florestas, nos bosques que le­vam a Kuopio, a Joensuu e à Carélia, na fronteira de Muonio ou nas manchas de água de Tampere.

O que hoje conhecemos da Finlân­dia deve-se (além da sua indústria e tecnologia) ao famoso «milagre finlandês», uma soma de dados que inclui o facto de o país ocupar o primeiro lugar nos es­tudos de matemática, de ser a nação menos corrupta do mundo ou de se si­tuar no topo do índice de desenvolvi­mento humano das Nações Unidas. Po­rém, antes de cobiçar a Finlândia do «milagre finlandês» – essa miragem que leva alguns idiotas do Sul da Europa a pensar que basta copiar o sistema de en­sino finlandês —, o leitor deve pensar na complexidade da geografia: eles têm frio, têm neve, têm noites fatais e quase eternas, têm uma disciplina luterana que os leva a poupar, a serem modera­dos nos gastos e honestos nas relações humanas. Eles pagaram esse preço, jun­tamente com o da guerra, o da invasão nazi, o da privação e o do isolamento: o de terem pertencido à coroa sueca e ao império russo. Admiro-os muito, aos finlandeses – são o povo das florestas.

Quando ouço Finlandia, de Sibelius, não ouço nenhum «milagre finlandês»: é a pura respiração das florestas que atra­vessa o espaço. Faça essa experiência, quando chegar lá.

in Outro Hemisférios – Revista Volta ao Mundo - Abril 2008

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