março 09, 2006

Um mundo perfeito

Em Espanha existe uma comissão nacional para a racionalização dos horários que tem como função, entre outras coisas, mudar o país. O objectivo é simples e maduro em dois pontos essenciais acaba-se com a "siesta" e impede-se os espanhóis de jantar a horas tardias, harmonizando os horários do simpático país peninsular com o "resto da Europa" e reafirmando que o desenvolvimento e o enriquecimento profissionais não sejam sinónimos de renúncia à vida pessoal e familiar dos funcionários e empregados do sector público, nomeadamente.

Qualquer pessoa munida de bom-senso estará de acordo com o princípio. Em Espanha, que eu saiba, estão todos de acordo a burocracia governamental, os defensores da globalização, a igreja, as associações de defesa da família e da mulher, bem como os teóricos e exegetas da produtividade. Se é assim tão fácil, por que razão até agora não se fez essa mudança? Porque a sociedade é preguiçosa, dolente, avessa às mudanças, amiga de beber até tarde, de jantar em horas a que os suecos estão a dormir, e está cheia de colesterol, fumo, gorduras excedentárias, bares e discussões tardias sobre futebol. Esta sociedade frívola, desregrada e maculada pelo desrespeito aos ritmos de trabalho normais em Frankfurt ou em Oslo, produziu coisas memoráveis mas está doente. É preciso reformá-la e transformar a vida dos seus membros, geralmente irresponsáveis e a necessitar de disciplina, dieta e horários primaveris.

Pelo contrário, o Governo espanhol está cheio de pessoas felizes. A comissão de horários também. São pessoas que acordam a horas, que trabalham em ambientes ecologicamente correctos e onde se instituiu a paridade de género. Almoçam iogurtes dietéticos e não tripas à madrilena ou pratos condenados pelos cardiologistas, fazem ginástica, chegam a casa a horas decentes (digamos ao fim da tarde) e deitam-se cedo no leito conjugal, quando bandos de energúmenos ainda circulam pelos cafés, fumando e contando anedotas, enchendo os seus vasos sanguíneos de substâncias nocivas à saúde, dedicando-se ao adultério e a literaturas que não são nada saudáveis.

O debate sobre os horários em Espanha ameaça, evidentemente, espalhar-se por outros países do sul da Europa, desejosos de imitar os seus concidadãos de Dusseldorf, de Helsínquia ou da renovada Espanha, construída à maneira do retrato sorridente, acrílico, saudável e ligeiramente bem vestido do líder Zapatero. Não por agora, porque somos pessoas desprezíveis e dadas a festejar prazeres grotescos (como conversar até tarde, comer razoavelmente e jogar cartas), mas Portugal há- -de entrar na liça. Nessa altura, empresários e autoridades morais, inimigos da licenciosidade, mães de Bragança, comissões de vigilância familiar, cardiologistas e especialistas em dietética e ciências do emagrecimento, ficarão também mais felizes - o Sul da Europa deixará de ser esse fragmento bárbaro no mapa do continente, onde as pessoas se dedicam à produtividade, ao escrupuloso cumprimento de horários, à saúde e à vida em família. A taxa de divórcios diminuirá, certamente, as doenças coronárias recuarão e mesmo os escritores serão regulados por uma comissão que os impedirá de escrever acerca de ambientes soturnos ou sobre temas depressivos ou sexualmente discriminatórios. O Sul da Europa viverá como uma espécie de retrato do paraíso na Terra, as lojas fecharão todas ao domingo, as pessoas irão à missa e participarão em associações de vizinhos, terão gémeos sorridentes e férias no campo.

Este retrato existiu no passado. As grandes utopias, de Campanella a Thomas More, de Calvino a Lenine, de Hitler a Pol Pot, tiveram desejos semelhantes. Na república de Calvino puniam quem faltasse às orações e noutras matavam quem atalhasse pela licenciosidade. É um mundo ideal e perfeito. Pessoalmente, não quero viver nele.

Jornal de Notícias - 9 Março 2006