março 25, 2006

Cordial, cheio de pecado

O Ancoradouro, em Moledo, é uma referência fundamental para o nosso apetite. Simplicidade que comove, generosidade na mesa, simpatia absoluta. Uma grelha abençoada à beira do mar do Minho.

Não vale a pena elaborar uma tipologia de restaurantes só para chegarmos à conclusão de que há restaurantes de que gostamos e restaurantes de que não gostamos – e de que, entre os restaurantes de que não gostamos há alguns que são excepcionalmente bons mas aos quais, vá lá saber-se porquê, não aderimos totalmente. Ou seja: não sentimos por eles aquele entusiasmo que nos faz recordar um prato, um aroma, uma voz, uma luz, até um gesto de cordialidade.
Por exemlo: agora há casas que se assumem como «restaurantes-gourmet». Nunca vi coisa mais chinfrim e desnecessária, só possível na boca provinciana de uma gentinha que confunde o negócio dos restaurantes com a ditadura da sua arrogância. Haver um «restaurante-gourmet» é um abuso de autoridade, sobretudo se o chefe de mesas (como me aconteceu há pouco tempo, ali na região Centro) avança para mim, desdenhando dos meus jeans (ah, eu devia ir engravatado para exibir o meu Armani negro), avisando que não era possível degustar um charuto no final de uma refeição aliás razoável (e admito eu devesse saborear o meu charuto fora da sala de refeições, num barzinho ou numa varanda onde saboreasse um álcool final) porque se tratava de um «restaurante-gourmet»; como se o «gourmet» fosse a um restaurante «apenas» para comer. Erro crasso, redondo e definitivo. Uma pessoa de bem vai a um restaurante para comemorar uma parte da sua vida.

É o que eu faço quando vou ao Ancoradouro. Em primeiro lugar, porque é em Moledo, no Minho, e Moledo faz parte da geografia romântica portuguesa. Em segundo lugar, porque aquela família que abriu as portas do Ancoradouro é um modelo de generosidade (nota-se pela forma como as mesas respiram abundância genuína e colesterol em doses controladas, apesar de tudo) e de simpatia. Em terceiro lugar porque, quando saio do Ancoradouro, me apetece passear entre os pinhais que vão dar à praia – o que significa que estou a um passo da felicidade absoluta durante aquelas horas.

Tudo começa quando os meus companheiros de mesa olham para a lista e franzem o sobrolho – não de desagrado, mas de comoção espiritual e de ligeiro entupimento das artérias: sopa de legumes (aviso que é sempre excelente), presunto, chouriço e alheira na grelha (absolutamente genuínos ambos os enchidos) – para entrada. Os peixes frescos recebem também tratamento de grelha e são fundamentalmente três: linguado, rodovalho e robalo. Perfume de mar, em absoluto – só um grelhador experiente sabe conservá-lo até chegar ao prato. O bacalhau, depois de passar pelo fogo (grelha igualmente), em lombos que vão soltando gelatinas salgadas, irrompe em travessas, vigiado por batatas à murro, azeite, alho e legumes cozidos ou salteados. Se o leitor (e a leitora) suspira, eu suspiro muito mais. Sou um sentimental.

As carnes são essencialmente as seguintes: strogonoff (para duas pessoas), lombo de vaca, bife de vitela ou de vaca, posta, costeleta ou costeletão – tudo vindo do Barroso. E vem, garanto eu. Da última vez que passei no Ancoradouro, dividimos um costeletão e uma posta barrosã. Éramos quatro. Não quero, como nosso amado Camilo escrevia, referir-me à refeição para que ela seja «reedificada com adjectivos pomposos e advérbios rutilantes». Basta o essencial: foi um momento de altíssima metafísica. Depois de a alheira passar junto das pituitárias e de ser recebida e devorada com aplauso e proveito, vieram então a posta e o costeletão. Eu sou adepto deste último, que vem até à mesa sem cambalear, golpeado para apenas mostrar de que frescura é feita aquela carne, rescendendo a alho, a azeite e a uma leve acidez que poderia ser de limão, mas não é. Em procissão, e ainda debaixo do pálio, vinha uma caçarola de barro com arroz de feijão e grelos e uma outra, mais baixa e redonda, repleta de grelos de couve ou, como se diz apropriadamente no Norte, de espigos. «Suavíssimo arranjo!», riu João da Ega, o de Os Maias, comentando o caso de Carlos da Maia e da senhora condessa de Gouvarinho. Pois a este conjunto à mesa do Ancoradouro apenas faltava o perfume de verbena da senhora condessa antes de ir em devoção ao Senhor dos Passos. O resto estava tudo lá: a tentação, a luxúria, todos os pecados – acumulando-se uns sobre os outros, chamando por mim das labaredas do Inferno.

Quando pedi uma cerveja (o vinho do Douro tinha já partido e eu ainda não tinha provado a selecção de verdes tintos) para repousar, antes da sobremesa, lembrei-me da enumeração: crepes de doce de morango caseiro, de banana, chocolate, mel e baunilha; depois, sorvete de limão, manga e framboesa; depois, ainda, leite creme queimado, claras em castelo com chocolate ou com doce de ovos, creme de castanha com natas ou bolo de chocolate. Fantástico. Desisti. Pedi o mesmo de sempre: queijo (formosíssimo) com doce de abóbora. Sim, depois bebi um whiskey e tomei dois cafés. E lá fui até à beira do mar, sentar-me e suspirar. Era o meu ancoradouro.

À lupa
Vinhos: * *
Digestivos: * *
Acesso: * * * *
Decoração: * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 60
Vinhos brancos: 12
Vinhos verdes e alvarinhos: 5
Espumantes & champanhes: 4
Aguardentes portuguesas: 12
Portos e Madeiras: 3
Uísques: 15
Cervejas: 1

Outros dados
Charutos: sim
Estacionamento: fácil
Levar crianças: sim
Área de não-fumadores: sim
Bengaleiro: sim
Reserva: muito aconselhável
Preço médio: 25 euros

Ancoradouro
Rua João Silva 522-r/c
4910-264 Moledo
Tel: 258 722 477
Encerra à segunda-feira de 1 de Julho a 31 de Setembro. Abre à sexta, sábado, domingos e feriados, de 1 Outubro a 30 Junho.

in Revista Notícias Sábado - 25 Março 2006