março 03, 2006

Nunca se pode voltar atrás, felizmente

V., entre dois sorrisos, prometeu arranjar-me um segundo visto — mais prolongado - para entrar na Indonésia. Ele não sabia, mas eu nunca mais esqueceria o seu país, nem as colinas de nevoeiro a arrastarem-se sobre as florestas, nem o mar, nem as lagoas no al­to das montanhas, nem a viagem para Bali. Um visto é só um visto, mas aquela pequena representação consular, perdida numa ilha do Pacífico, era a ultima oportunidade para obter a autorização de demorar-me mais alguns dias «no maior pais muçulmano do mundo». Ele perguntou-me porquê. Eu não sabia. Estar do outro lado do mundo tem destas coisas, uma imprecisão, uma dúvida, uma coisa sem exactidão nem resposta: às vezes o desejo de andar perdido por uns dias, passear entre os barcos do porto que descarregam contentores, dormir em hotéis escondidos nos «bairros residenciais» e ocupados por clientes habituais que não precisam de registar-se, que só vão a Jacarta em negócios bre­ves, que fazem as suas orações depois de se descalçarem na varanda, que regressam tarde depois de percorrerem a via sacra dos bares e clubes nocturnos da cidade mais surpreendente daquele lado do hemisfério.

Havia também a tentação do costume: alugar um carro, comprar um mapa de estradas, preencher as páginas de meio Moleskine com as receitas daqueles restaurantes solitários onde se comia em mesas cobertas de toalhas de plástico e onde as cervejas vinham em baldes de gelo que se desfazia depressa de mais. O sabor do arroz. O camarão picante. O toque de caril nos legumes cozinhados em vapor. Dor­mir tarde, dormir cedo.
Não expliquei nada disto a V., que se limitou a aceitar os vinte dólares
adicionais e a devolver-me o passaporte dai a umas horas, já com o autocolante do visto. Eu poderia obter o visto à chegada, evidentemente, mas ainda não sabia em que voo eu tinha lugar: no de Jacarta ou no de Bali. Assim, eu estaria preparado e não tinha de responder às perguntas que na altura eram habituais nos aeroportos, sobretudo dirigidas a viajantes solitários com passaporte português.

Nunca cheguei a agradecer a V. esse favor extremo que me poupou a incómodos e filas no aeroporto. «Os portugueses são bem-vindos.» Não era totalmente verdade, na altura. Duas ou três semanas antes eu conhecera o último militar indonésio a abandonar Dili num barco que levava o derradeiro contingente de soldados, os despojos arrancados à pressa, guardados com ódio ou apenas com ressentimento, os últimos carimbos da autoridade Indonésia. Lembro-me dele; foi ele que me levou ao aeroporto, numa van que fazia de taxi colectivo; anos antes fora ele que, antes de saltar para bordo do navio (de metralhadora a tiracolo, chapéu preso por um fio ao pescoço), teve ainda tempo de pontapear um bidão abandonado - o último gesto de um ressentido, a mensagem derradeira de um derrotado. De­pois disso, pulou para dentro do navio militar; as imagens da televisão mostram-no ainda, debruçado sobre a água do porto de Dili, num riso escarninho que não escondia as lágrimas. Também não contei isto a V, nem poderia contar. Éramos estrangeiros numa terra distante, verde, nebulosa, húmida, silenciosa. Bebíamos cerveja num dos três bares do porto. Eu tinha conhecido, ali, uma das mulheres mais bonitas do mundo, mas a história não tem história senão a recordação dessa circunstância que terminava a viagem que me levara de Amesterdão a Singapura e de lá até à proximidade do Grande Recife.

Se eu voltasse atrás, se pudesse voltar atras, contaria a V. que um dos momentos mais felizes da minha vida aconteceu na véspera de regressar à Europa num da­queles voos que chegam de madrugada a Amesterdão (de novo) e de um outro que me depositou a meio da manhã em Lisboa (fui logo trabalhar, só entrei em casa muito tarde - vantagens de percorrer os fusos horários de oriente para ocidente). Se eu pudesse voltar atrás, na verdade, voltaria também àquele lugar onde tive um dos momentos mais fe­lizes da minha vida, sentado no chão de uma varanda, a ouvir música que também se ouvia em todo o lado (chill out, muito chill out), a beber o ultimo whis­ky, suspeitando o mar nocturno, a humidade da ilha. Mas nunca se pode vol­tar atrás, felizmente.

in Outro Hemisfério – Revista Volta ao Mundo – Março 2006