março 04, 2006

No coração das Avenidas

O Policia faz-nos pensar nos restaurantes de antigamente. Em como havia uma perfeição que evocava a profunda natureza do apetite. Não é para feitios, digamos, modernos.

Como eram os restaurantes onde iam os Portugueses de antanho? Não sei. A falar verdade, podemos saber como eram os museus, como eram as lojas, como eram as casas, como eram os teatros - e até podemos ter uma ideia sobre como poderiam ser os restaurantes. Mas falta-nos isto: os aro­mas, triunfantes, saindo da cozinha, passando em travessas, rescendendo, flutuando, atravessando os ares, impregnando a memória verdadeira - a dos olfactos, a da vista e a daquele tacto que não tacteia mas experimenta com o garfo, com a colher e até com a ponta dos dedos. Conservamos deles as mesas, as fotografias, os velhos empregados de mesa, as cozinheiras desconfiadas mas sorridentes, os trejeitos, os feitios; e também a maneira como o peixe vem à mesa, a natureza dos acompanhamentos, o jeito de servir o vinho e de recomendar a aguardente; e imaginamos sereníssimas vozes rodeando as mesas, cinzeiros trazidos com cerimonia, indicações segredadas na hora de escolher um prato; e cobiçamos aquele momento em que um sorriso de tristeza passa pelo rosto do cavalheiro que anota o nosso pedido quando, em vez da mãozinha de vitela à jardineira, alguém escolhe um bife bem passado, ou fica indiferente diante da perninha de borrego ou das ervilhas com ovos. Ah, esses restaurantes onde as sopas são cremosas e conhecem a felicidade da concordância em vez do combate entre ingredientes que se detestam. Ah, aqueles restaurantes que ainda servem pescadinhas de rabo na boca e suculentos pargos subtraídos ao forno, pecaminosos.

Eu estou a falar de O Polícia e ainda não tinha dito. Mas parece-me que é um dos restaurantes de antanho - e não apenas pelo facto de ter sido fundado em 1900. Mas pelo jeito. Até pelas mudanças de há uns anos, quando teve direito a um bar à entrada (ou à saída, pela Av. Conde de Valbom - já que a entrada clássica continua a ser a da Marquês Sá da Bandeira, diante das sebes e arvoredos da Gulbenkian), a fardas novas e à cozinha remodelada - e à separação firme entre sala de fumadores e de não fumadores. Estejam todos à vontade.

Na verdade, O Polícia é, hoje, um clássico das Avenidas - é um reduto para a cozinha portugue­sa de antanho, como eu disse. Um dia destes, levei lá uma senhora a jantar. Coisa moderna, educada, confesso. Tive de explicar-lhe o que eram as mãozinhas de vitela, porque é que a pele das ovas de pescada (que são uma das minhas referencias n'O Polícia) não podia ser ferida grosseiramente, o que era a sopa de cozido (era uma quinta-feira) e o que fazia lá aquela folhinha de hortelã, o que eram os filetes de peixe-galo, como deviam ser os jaquinzinhos (quando os há), como se prendiam as pescadinhas de rabo na boca, o que era a pesca­da de anzol, porque é que o pato corado com arroz tinha aquele ar tostadinho, como se limpava e temperava um cabrito antes de entrar no forno, ou a natureza verdadeira de um esparregado de espinafres. Já não tive de explicar a razão de ser daqueles peixes que passavam, completos ou em tranche, cozidos ou grelhados, em travessas decoradas por batatinhas redondas e legumes salteados ou cozidos: eles são realmente apetitosos, n'O Polícia. E, à medida que a sala se enchia de famílias com ar saudável (e de olhar brilhante enquanto liam os cardápios) ou de cavalheiros da indústria ou da política ou do jornalismo, que repousavam de um dia de indecência e de labor, eu recitava, romanticamente: gambas na sertã com alhinho, amêijoas à Bulhão Pato (deliciosas), pargo de Sesimbra no forno à antiga, cherne grelhado, papinhos de cherne (designação libidinosa, claro), cabeça de pargo com ovas, robalinho, salmonetes, linguado de traineira, garoupa do alto (formosíssima, devo dizer), cabrito no forno com batatinhas e creme de espinafres, vitela com cogumelos e cebolinhas, concluindo - como estância final - com iscas a portuguesa, rim de vitela com cogumelos salteados, ou ainda a memória do cozido à portuguesa com enchidos de Lamego, do coelho na frigideira ou das favinhas e dos rojões à transmontana. A minha lição terminou com um pao-de-ló com doce de ovos e um leite-creme (que, infelizmente, não foi queimado na hora), o que pretextou um último copo de vinho do Douro - que tinha começado por acompanhar um cabrito formidável. Nem o frio de Fevereiro me demoveu.

À lupa
Vinhos: * *
Digestivos: * *
Acesso: * * * *
Decoração: * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 60
Vinhos brancos: 20
Vinhos verdes: 7
Espumantes e Champanhes: 7
Aguardentes portuguesas: 12
Portos e Madeiras: 6
Uísques: 20
Cervejas: 6

Outros dados
Charutos: Não
Estacionamento: Há parques subterrâneos perto
Levar crianças: Não
Área de fumadores: Sim
Bengaleiro: Sim
Reserva: Muito aconselhável
Preço médio: 27 Euros

O POLÍCIA
Rua Marques Sá da Bandeira. 112 A
1050-150 Lisboa
Tel: 217 963 505
Encerra sábado ao jantar, domingos e feriados

in Revista Notícias Sábado - 4 Março 2006