março 03, 2006

Absoluta beleza

Nós somos desajeitados. Enquanto comemos sujamos a toalha, os dedos e a roupa. Já não sabemos mastigar devagar. Desconhecemos a beleza absoluta de um peixe cru.

Também não é assim tão verdade: a cozinha japonesa tornou-se moda entre nós. As pessoas, simplesmente adoram comer sushi. Ou detestam comer sushi. Tem aquele cheiro de gengibre fresco, de wasabi, de vinho de arroz, de atum acabado de cortar (poucos de nós comeram o o-toro, o atum do atum, o sashimi perfeito). As pessoas ado­ram comer sushi. Pronunciam súchi ou suchí, dizem adooooro, reviram os olhos. Mas desconhecemos todos aquela delicadeza extrema.

Nós somos desajeitados. Enquanto come­mos sujamos a toalha, os dedos e a roupa. Já não sabemos mastigar de­vagar. Temos artrite, enfartes e gri­pes. Desconhecemos a beleza abso­luta de um peixe cru, de um sushi tentador. Anthony Bourdain conta nos seus livros que conheceu, no Japão, um cozinheiro, o senhorTogawa, Togawa-San, que durante três anos se dedicou apenas ao trabalho com o arroz. «Nos seus primeiros três anos de cozinha foi tudo o que lhe foi permitido tocar: arroz.» Arroz marinado, preparado, cozido, perfumado, manuseado. Bourdain conta, emocionado, como os dedos de Togawa executam, disciplinados, uma dança extraordinária até compor uma dose de sushi perfeito: exactamente com o mesmo número de grãos de arroz cada rolinho embrulhado em algas. O mesmo número de grãos de arroz que nunca foram contados - apenas manuseados, «num ballet completo para dez dedos», suspeitos, intuídos. Um dia, num restaurante japonês de Frankfurt que apenas servia grelhados, o cozinheiro preparava vários pratos para mim e para um amigo; estávamos ambos cheios de fome e fartos de bratwurst. Não sei se já viram aquelas facas fantásticas, o bisturi de um cirurgião plástico, a espátula de um artista mini­mal, separando grãos de arroz, cortando lombos de sardinha retirados da chapa, filetes afiados de pargo ou de polvo frescos. Se não viram, perderam um espectáculo alucinante; nós estávamos a vê-lo, dividindo as doses completas em dois pratinhos que eu e o meu amigo fomos devorando depois de termos passado por uma taça de pickles, shiitake, ovas de ouriço-do-mar, saque morno, espetadas de frango grelhado, soja frita debruada com pasta de gergelim e sésamo. O lombo de novilho caiu em laminas gelatinosas sobre os nossos pequenos pratos, os legumes divididos com justiça salomónica, tudo – até que sobrou uma ervilha, uma erviIha-de-cortar, simples, apenas passada pelo vapor e ligeiramente tostada de um dos lados. O cozi­nheiro cortou-a ao meio; metade dela de cada um. Mas, surpresa desagradável!, um grão de ervilha, um botãozinho verde de ervilha caiu, abandonado, sobre a tábua de madeira onde a faca, enorme, decidida, brutal, dividira toda a nossa comida. Olhamos uns para os outros, os três. O que fazer com aquele grão de ervilha, sedosa, solitária? De repente, um zzzzzf!, a faca sobe meio metro no ar e desce à velocidade necessária para separar um atum pela espinha central - mas neste caso destinada a cortar o grão de ervilha ao meio, dividindo-o de seguida pelos nossos dois pratos.

Nós somos desajeitados. En­quanto comemos, devoramos tudo o que é neutro e nos envergonha. É o nosso destino, a nossa tentação. Os japoneses que comeram fogu, o peixe mortal, de fígado venenoso, letal, também conheceram esse destino sem virtude, cortante, decidido. Uma toxina que despedaça. Comer uma fatia transparente do fígado de fogu pode matar em poucos minutos. Mas não morrem de enfarte, a menos que sejam lutadores de sumo. Nós somos desajeitados com a comida.

Por isso, desta vez a receita é apenas o convite ao ballet: segurar os dois pauzinhos e devorar sashimi. A minha avó, há muitos anos, preparava-me lombos crus de sardinha, que eu comia com apetite e tentação: sem espinhas, sem cozedura alguma, sem calor, sem ser tocado pelo fogo que transformou o homem num ser cultural, aqueles lombos crus de sardinha da minha infância só regressaram muitos anos depois, num restaurante japonês, rodeado de sabores finos, frios, inacreditavelmente macios e mergulhados em aromas triunfais, agridoces. Eu não sabia que era sashimi, o que tinha comido na infância, e que me transformara num louco pela cozi­nha e pelos sabores. Não sabia e ainda hoje tento esquecer. A verdade é que nós somos seres desajeitados. Enquanto comemos sujamos a toa­lha, os dedos e a roupa. Desconhe­cemos a beleza absoluta do risco, o fio da navalha, a flor que decora o prato triunfal servido num fim de tarde de Primavera. O nosso metabolismo mudou. Às vezes precisamos daquela tranquilidade de mármore de um samurai de Kurosawa, convidando-nos ao silêncio.

in Atlas de Cozinha – Revista Volta ao Mundo – Março 2006