março 18, 2006

Vida perfumada

O Galito ameaça transformar-se num clássico. Depende das vezes que lá vamos e nos acostumamos ao seu cardápio tradicional. Se há boa cozinha alentejana em Lisboa, ela está dentro das suas paredes. Vinda da terra. Sem falsificações.

Vidas simples. Falo de "vida simples" nestas circunstâncias, sempre que me encontro diante deste prato – uma sopinha de tomate com ovo, por exemplo, rescendendo, numa terrina de onde se soltam nuvens de vapor perfumado. O caldo descerá sobre duas fatias de pão, até aí solitárias no prato, e será depois coroado com o ovinho escalfado, acobertada pelos filamentos de cebola, pelos músculos tenros do tomate, pelo abraço de duas tiras de pimento. Este é o começo; o resto geralmente nunca me interessou – na verdade, a história das minhas idas ao Galito, à entrada do histórico e quase alentejano bairro de Carnide, é uma história de esquecimentos. Escrevi sobre ele a primeira vez, era o Galito uma tasquinha com cinco ou seis mesas; à sua porta esperava-se uma eternidade por um lugar milagroso que nos livrasse da fome, do frio, da intempérie da alma, da solidão e, às vezes, da melancolia. Nessas circunstâncias, eu dava tudo por umas migas gatas de bacalhau, mesmo que a minha receita pessoal fosse diferente. E daria tudo por um ensopado de borrego manuseado com tempo, paciência e delicadeza pelas mãos solenes de Dona Gertrudes, onde se concentrava a memória daquela cozinha ("ancestral", dizem os dicionários) que vem da Serra d'Ossa e nos encontra a nós e ao nosso estômago, bárbaros, cheios de apetite, de falta de maneiras.

Por isso esqueço-me frequentemente do que acontece nas noites de um jantar no Galito, daqueles mais ou menos tardios, depois das nove e meia, dez, quando ao apetite se somam a falta de paciência e o enlevo das papilas. Empada de perdiz – aquela massa folhada pecaminosa que envolve os filamentos do bichinho? Sopa de bacalhau com tomate? Veado estufado, cortadinho em fatias numa travessa onde o suco, adocicado, se transforma em redução perfeita de um molho denso e guloso? Perdiz de escabeche? Costeletinhas de borrego servidas na companhia de um arroz de coentro, perfume dos perfumes? Esqueço-me. Esqueço os nomes dos pratos, se bem que eles sejam simples e não arrastem evocações literárias, arrogâncias de estilo e de composição, inventários de ingredientes, paranóias que recentemente invadiram todas as salas de restaurante. Esqueço. Limito-me a esquecer. A garrafeira é cuidada, os digestivos são escolhidos a dedo (uma aguardente vinda das profundezas da terra, um Porto vintage bem escolhido). O Henrique dedica aos vinhos uma atenção esmerada – muitas vezes, a nossa escolha é apenas perniciosa, uma coisa desnecessária, se bem que a minha opção quase permanente por vinhos do Douro e do Dão nos faça entrar em pequenos conflitos.

Mas o que eu aprecio é a simplicidade. Esclareço que nem sempre isso acontece – há restaurantes onde o "excesso de estilo" compensa faltas evidentes na cozinha. Com as mãos de Dona Gertrudes isso não acontecerá. Há, naquela cozinha, um património imaterial que chega a comover: a hora a que se começa a cozinhar, bem cedo, em estufados lentos, cozidos tranquilos. Só assim se explica a naturalidade do seu cozido de quinta-feira, ou da sua sopa de grão com vagens, com as carninhas ao lado e a indispensável folhinha de hortelã, ou das suas burras com feijão, ou dos seus miraculosos pezinhos de coentrada. Só assim se explica que a galinha com tomate chegue à mesa com as carnes atravessadas de gelatinas naturais, elementares, sem excessos de temperos, sem arremedos de "alentejanices", aquela mistura de ervas que mascara o sabor dos ingredientes mal cozinhados, e que faz as delícias dos "restaurantes alentejanos". Na verdade, a generalidade de "restaurantes alentejanos" limita-se a introduzir – em pratos banais – uma inacreditável quantidade de aromas e temperos para lhes conferir "identidade regional". Mas o essencial perde-se; e o essencial é aquilo que ainda não se perdeu no Galito: ingredientes saborosos, simplicidade, ausência de barroco (que é bem-vindo noutras circunstâncias e noutros restaurantes), delicadeza do azeite e de outras gorduras nos pratos que vêm de entrada: as favinhas frescas com rodelas de morcela e um empréstimo de coentros, o coelhinho frito, a morcela frita ou com ovos, os ovos com tomate ou com espargos. Até da sopinha eu gosto: o pão acre, o caldo do alho, azeite e coentros frescos, o ovo desfazendo-se, soltando-se em gemidos.

Depois da siricaia, do fidalgo, do morgado, do pão de rala; depois do café e daquele álcool de retempero, há ainda uma boa selecção de charutos, muito bem indicada. E quando voltamos ao mundo, a sensação de peso esvai-se. É essa a qualidade da boa comida.

À lupa
Vinhos * * *
Digestivos * * *
Acesso * * *
Decoração * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * *
Ar condicionado: * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 130
Vinhos brancos: 60
Vinhos rosés: 2
Espumantes & champanhes: 6
Aguardentes portuguesas: 16
Portos e Madeiras: 12
Uísques: 20
Cervejas: 6

Outros dados
Charutos: sim
Estacionamento: relativamente fácil, nas traseiras
Levar crianças: não
Bengaleiro: não
Reserva: muito aconselhável
Preço médio: 28 euros

O Galito
Rua da Fonte, 18A - Carnide
(Junto ao Largo da Luz), Lisboa
Tel: 21 711 1088
Encerra aos domingos e feriados

in Revista Notícias Sábado - 18 Março 2006