março 13, 2006

Nós, ignorantes e licenciosos

O senhor Ministro dos Estrangeiros acha-nos ignorantes. Não a todos os portugueses, para já – apenas os que não concordam com ele. Como princípio parece-me errado, mas a arrogância e o ressentimento não são pecados capitais, apenas problemas de carácter, e isso não entra nesta conversa. Há, evidentemente, uma guerra entre o CDS e o seu antigo militante; também isso não entra nesta conversa.

O que está em questão é a necessidade, sentida pelo senhor Ministro dos Estrangeiros, de nos explicar melhor (a nós, ignorantes, como insistiu) o sentido das suas palavras. Ora, esse sentido está claro desde o princípio: Diogo Freitas do Amaral acha que as célebres caricaturas constituem uma “enorme ofensa” aos povos muçulmanos e incitam a uma guerra de religiões. Não viria mal ao mundo se se tratasse apenas do sentido destas pobres vulgaridades. Porém, a questão é mais complexa: o senhor Ministro dos Estrangeiros permitiu-se, de seguida, dar lições aos seus concidadãos acerca do uso da “liberdade de expressão” (que, de dedinho espetado, trocou por “licenciosidade”), baralhou-se em matéria teológica e andou no fio da navalha quando considerou “compreensível” que as multidões incendiassem embaixadas e praticassem outros actos que passaram nas televisões. Como hoje se sabe pela imprensa, essa reacção foi cuidadosamente preparada durante uma conferência islâmica em Dezembro passado. O senhor Ministro, que podia ter emitido uma declaração basicamente inócua e diplomática, como se esperava, alimentou as esperanças de solidariedade do embaixador iraniano em Lisboa, com as consequências que se conhecem. Uma trapalhada escusada.

Para os que acham que este assunto está enterrado e devia ser esquecido a bem de todos (o senhor Ministro dos Estrangeiros não deixou), eu explico por que razão o tema é importante e não deve ser ignorado. Em primeiro lugar, pela natureza do ressentimento; não podemos permitir que afirmações tão graves sobre a liberdade de expressão e sobre o nosso lugar no mundo e na história das civilizações (“nós, os agressores”, assim se podem resumir malevolamente as palavras de Freitas do Amaral sobre a história do Ocidente) possam ser tão banalizadas e pacíficas.

Em segundo lugar, pelo facto de nenhum membro do governo do meu país estar autorizado a duvidar da boa fé dos seus concidadãos. Quando um cidadão diz “liberdade”, um ministro (nem que fosse Ministro dos Costumes ou da Moral) não pode traduzir por “licenciosidade”. Isso sim, é má fé e desonestidade intelectual.

Em terceiro lugar porque as suas declarações estão inquinadas por um preconceito ideológico e instrumental (a sua aversão à política externa americana a par de uma inesperada conversão às teses dos estudos pós-coloniais) que, sendo “compreensível”, não pode ser transformada em doutrina do Estado.

Em quarto e último lugar porque nós, os licenciosos, os que duvidam, os que riem, os que acreditam na liberdade, não somos ignorantes. Simplesmente, nós estaríamos do lado de Salman Rushdie ou de Taslima Nasreen quando foram condenados à morte pelos ayatolahs, acusados do crime de “blasfémia”. O senhor Ministro, já sabemos, estaria do outro lado. Por isso não fala em nosso nome.

Jornal de Notícias - 13 Março 2006