março 02, 2006

Regulação de quê?

Não sei se têm reparado mas há coincidências a mais. Primeiro, foi o ministro dos Negócios Estrangeiros que atribuiu à liberdade de Imprensa a tentação canalha de se desviar para os caminhos da licenciosidade. Depois, um deputado socialista comparou cartoonistas a assaltantes de embaixadas. O primeiro-ministro não se eximiu a comentar o assunto (como devia) e falou de irresponsabilidade e de excessos de liberdade. A Polícia entrou pela redacção do jornal "24 Horas" e confiscou computadores - e um juiz acaba de decidir que é legítimo vasculhar nesses computadores em busca do que entenderem ser pertinente na ocasião. A proposta de reforma do Código Penal, em curso, introduz a ideia de "crime de perigo" e será mais duro para com os jornalistas. Uma nova Entidade Reguladora para a Comunicação Social, nascida de um entendimento tácito entre os dois grandes partidos do regime (o PS e o PSD) vai permitir-se vigiar o comportamento da Imprensa, podendo "proceder a averiguações e exames" (além de "aceder às instalações, equipamentos e serviços das entidades sujeitas à supervisão e regulação da Entidade") nas redacções dos jornais sem mandato judicial e investidas como "agentes da autoridade".

Se nos recordarmos do "caso Marcelo" (que o governo de Santana Lopes pretendia afastar - e afastou - da TVI), podemos aprofundar a história de uma arqueologia recente da tentação de controlar a Imprensa. Não se trata, aqui, de defender a "corporação jornalística". Trata-se de defender a liberdade de expressão e de evitar o controlo da Imprensa, da opinião publicada e das nossas opções como leitores e cidadãos.

Na verdade, mesmo que não seja essa a intenção dos autores que deixaram a sua assinatura em cada um dos acontecimentos, trata-se de uma escalada grave contra a liberdade. E, nessa matéria, abdicando-se uma vez, abdica-se para sempre.

A esta tentação socialista de "controlar a rapaziada", de meter os jornais e a televisão na ordem, acrescenta-se ainda a vontade de, através da ERC, fazer deontologia por conta própria e emitir pareceres quando lhe apetecer, gastando para isso um milhão de euros anuais (é o orçamento, não discriminado, da ERC) para ter opinião sobre tudo. Para isso, a ERC vai poder fiscalizar o que entender; a breve prazo meter os blogs na ordem, definir que não há espaços de "comunicação" que não possam estar livres da sua alçada; dar aulas (não solicitadas) sobre jornalismo (a quem não lhas pediu). Para quê? Para proteger a sociedade (que lho não pediu) da licenciosidade das opiniões.

Acontece que um dos valores da nossa sociedade é precisamente o que nos manda proteger dessas patrulhas de caçadores da licenciosidade e dos sensatos polícias da Imprensa e da opinião. Argumentar-se-á que, dado o perfil dos membros da ERC, não é previsível que essas novas autoridades entrem pelas redacções dos jornais ou nos computadores dos blogs pedindo explicações, vasculhando, punindo, erguendo o dedinho. Pode ser. Mas a verdade é que está escrito que o pode fazer. Ou seja, mesmo que isso não venha a verificar-se porque a sociedade mantém um nível de bom senso aceitável, o espírito é esse mais vigilância, mais controlo e mais poder.

Curiosamente, um dos responsáveis por esse espírito sinistro transformado em lei é o mesmo que alertava os portugueses para o facto de a eleição de Cavaco Silva ser um golpe de Estado anticonstitucional. Afinal, Augusto Santos Silva antecipou-se e torna-se, por desejo ou por omissão, um dos responsáveis por esse golpe contra a liberdade. Podemos confiar em gente desta?

Jornal de Notícias - 2 Março 2006