agosto 28, 2006

Questões de moral

1. O campeonato de futebol português começou como se impunha: com a algaraviada do costume e, pelo menos, dois jogos suspensos por causa da chamada “justiça desportiva”, essa canalhice que se atropelou durante meses por causa do chamado “caso Mateus”. Fosse por causa de um penalti mal assinalado ou por uma das normais e triviais declarações do chamado “dirigismo desportivo”, e compreender-se-ia o burburinho, que devia ser relegado para o seu lugar: a antecâmara do lixo. Mas não. O “caso Mateus” envolve juízes, desembargadores, gente da Liga, pessoal da Federação, reacções da UEFA ou da FIFA, interpretadores da lei, legisladores acometidos de esquizofrenia e o habitual desfile de comunicados, exigências e decisões contraditórias entre a assim designada “justiça desportiva” e os “tribunais comuns”.

Há quem pense que se trata de futebol apenas e que, portanto, o assunto se resolverá entre Gil Vicente, Belenenses e agora parece que com o Leixões. Não é só futebol. Basta ver o que aconteceu com a trapalhada da eleição do novo presidente da Liga de Futebol Profissional e respectiva impugnação para perceber que não se trata apenas de bola – tem a ver, também, com o baixo carácter que rodeia o mundo do futebol e das suas pequenas mas vistosas e escorregadias jogadas de corredor. Estado dentro de outro Estado, o futebol está mal frequentado e merece limpeza. Arrivistas, canalhas, gente boçal, má gramática – alguma forma de limpeza devia ser feita nesse submundo triste e empertigado. O que também incomoda, de resto, é essa participação de “doutores juízes” que aceitam julgar mal e associar-se à má justiça.

Não sei se é correcto ou não o recurso do futebol para os “tribunais comuns”, que são incapazes de apreciar um fora-de-jogo ou uma cotovelada, mas dado o descalabro profundamente amoral que vagabundeia na “justiça desportiva”, com gente (juízes e juristas!, faço notar) produzindo sentenças de acordo com conveniências detectáveis – é bom que sejam postos na rua. Para que ganhe o jogo quem marca mais golos e para que seja reduzida ao seu papel insignificante a canalha que conduziu a “justiça desportiva” a este caos. Eu sei que a vida segue, como de costume. Mas podemos insultá-los, ao menos.

2. Günther Grass, escritor alemão, prémio Nobel, foi durante anos considerado a “consciência moral da Alemanha” em luta com o seu passado nazi e contra os fantasmas que periodicamente despertam desse pesadelo; de alguma maneira associou-se à patrulha ideológica e política que vigiava os seus concidadãos e, também, os artistas que tinham atravessado a vida do III Reich.

Ao longo dos anos, Grass escondeu que ele próprio tinha pertencido às SS e à sua divisão especialmente mais sinistra, as Waffen-SS (ou seja, o braço militar do partido nazi). Tinha 17 anos. Sessenta e um anos depois, o autor de “O Tambor” confessou que tinha pertencido às Waffen-SS e pediu desculpa, inclusive à sua cidade natal, Gdansk. Naturalmente, levantou-se uma polémica sobre o assunto: Grass devia devolver o Nobel, nunca mais devia ser lido, etc. Parolices que varreram a Europa durante uma semana.

O que o episódio prova é o seguinte: primeiro, que Grass devia, sim, ter confessado mais cedo a sua passagem pelas SS – talvez a sua literatura, do ponto de vista testemunhal, tivesse beneficiado com a revelação; segundo, que a vida dos patrulheiros mais rigorosos e dos polícias da “moral política” alheia, como Grass foi, tem sempre um triste fim: o de serem desacreditados mais tarde ou mais cedo. Pessoalmente, não o acuso – aos 17 anos, na Alemanha de então, Grass seguiu os passos de milhares de alemães da sua geração. Mas confirma-se que se deve desconfiar desta gente que aceita vestir a pele de “consciência moral”. A vida segue, como de costume.

in Jornal de Notícias - 28 Agosto 2006

agosto 26, 2006

Árvores da minha vida

Enquanto não chega Novembro, os jantares no Vidago Palace merecem uma lambrança, sobretudo quando está bom tempo: ao longo da sua esplanada, as mesas com velas recebem-nos para outro filme.

Inaugurado em 1910, na transição para a República, o Palace é uma herança do velho regime, com o mito das 365 janelas das suas fachadas, os seus interiores, as suas visitas ilustres – e as suas termas. Já conheci o Vidago Palace em várias fases, desde a da paragem no tempo até à da derrocada iminente. Redescobri-o recentemente a expensas próprias, procurando refúgio, e pareceu-me um dos lugares mais perfeitos para repousar e para emigrar para outros tempos. De certa maneira, regressei à adolescência – aos seus parques, às suas árvores, às sombras de Julho e Agosto, às caminhadas por entre cedros (que, conforme à literatura, teriam de ser frondosos), às noites na sua belíssima esplanada, aos passeios pelas serras ou nas margens da piscina (azulíssima, profunda).

Passear em redor desse edifício centenário lembra-me sempre ligeiras valsas, hotéis termais onde há aquela suavidade temperamental do isolamento – o que são coisas de outros tempos, certamente. Por isso tenho uma relação especial com o Vidago e as suas sombras, as árvores da minha vida.

A actual proprietária, a Unicer, vai proceder a grandes remodelações, certamente necessárias. Senti o quê? Pânico, confesso. É trauma pessoal, mania de conservador. Durante dois anos, certamente mais, e a partir de Novembro próximo, o Palace encerra as suas portas como um museu desse romantismo tardio dos bosques do Vidago. Siza Vieira será o responsável pelo projecto e, bem-humorado em redor dos receios pelo fim das árvores do lugar (manifestados aqui e ali – e por mim, entretanto) mandou dizer (numa reportagem do “Público”): “Diga que vou dar cabo daquilo tudo.” É humor, Siza, é humor. Mas deixe-me que lhe diga: eu gosto daquelas árvores. Nada a fazer, desculpe a minha insensibilidade.

Enquanto não chega Novembro, os jantares no Vidago Palace merecem uma lembrança, sobretudo em estando bom tempo: ao longo da sua esplanada, as mesas com velas recebem-nos para outro filme, sem mencionar ainda o salão nobre, ecoando, grandioso. Ementa rigorosa e simples, de bom gosto. Para abrir, três sopas: um creme de cigalas com tomate ‘concassé’, e azeite de crustáceos, além de um ‘consommé’ de espargos verdes com ‘tortellini’ de lavagante e um creme frio de tomate verde com tártaro de atum, nata ácida e um ligeiríssimo toque de caviar (pudera, que é ‘avruga’). Perfeito. Nas entradas, para quem dispensa o exotismo destas propostas, recomendo o ‘carpaccio’ de vitela barrosã, na companhia de parmesão (com cogumelos e vinagrete de wasabi) ou os rolinhos de espargos grelhados, com queijo chèvre e o perfume da base de moscatel com uvas pretas, se bem que a lista se alongue através de um “estaladiço de rabo de boi, legumes em escabeche e pêra bêbeda”, de um atum com foie gras e framboesa, de ‘ravioli’ de choco (‘nero’) fritos com manteiga e caviar, ou de uma salada de lavagante com verduras. Nos peixes, robalo com crosta de pastel de bacalhau e risotto de azeitona e tomate seco, um bacalhau ‘confit’ com puré de grão e vegetais, uma dourada no pão (saída do forno), os peixes do dia e um arroz de polvo com vinho tinto e coentros. Fica para a próxima esse bacalhau, que hei-de experimentar. Já quanto às carnes, apresentação triunfal de um ‘carré’ de borrego com cuscuz, passagem de um peito de pombo com foie grãs e
risotto de cogumelos selvagens com grelos crocantes, além da naturalíssima posta de vitela Barrosã, com batata a murro e couve regional (a penca de Chaves) salteada. Há ainda um leitão bísaro (não sei se mesmo de Vinhais) mas o meu apetite também me condena ao arroz de costela mindinha com cogumelos, humedecido, guloso.

Faço notar ainda da sobremesa, a hipótese de uma boa carta de chás (com 10 escolhas distribuídas pela China, Índia, Japão, Taiwan e Sri Lanka). Vão bem depois de, entre outras propostas, uma torta de abóbora com gelado de queijo fresco e molho de mel e nozes ou um ‘fondant’ de chocolate branco com
gelado de chocolate amargo, e molho de caril e um pouco de coco. As almas vegetarianas podem escolher uma ementa muito apreciável (creme de espinafres, bife de ‘tofu’ com cogumelos ‘shitaki’ e ‘chao min’ de legumes, por exemplo) e as crianças têm menu próprio e aceitável.

É isto o paraíso. Eu passava um mês assim. Com árvores à minha frente, naturalmente.

À Lupa
Vinhos: * * *
Digestivos: * * *
Acesso: * * * *
Decoração: * * * *
Serviço: * * * *
Acolhimento: * * * *
Mesa: * * * *
Ruído da sala: * * * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos Tintos: 63
Vinhos Brancos: 25
Vinhos Verdes: 8
Portos & Madeiras: 26
Uísques: 15
Aguardentes & Conhaques: 12

Outros dados
Charutos: Não
Estacionamento: Muito fácil
Levar Crianças: Sim
Área Não Fumadores: Sim
Reserva: Aconselhável ao fim-de-semana de Verão
Preço médio: 35 Euros

VIDAGO PALACE RESORT
Parque de Vidago
5425-307 Vidago
Tel: 276.990900

in Revista Notícias Sábado – 26 Agosto 2006

agosto 21, 2006

Depois de amanhã, a América Latina

Um encontro de escritores trouxe-me ao Chaco – no norte da Argentina, entre o Rio Paraná e a fronteira com o Paraguai, e na estrada que, para o Norte longínquo, entrará depois na Bolívia. Quem conhece alguma coisa da América Latina sabe que a Guerra do Chaco, ocorrida nos anos trinta do século passado, é um dos pontos altos do conflito entre a Bolívia e o Paraguai pelo acesso ao oceano Pacífico. Se bem que nem a Argentina nem o Chile tenham a ver com ela, disputada pelos dois países mais pobres do chamado Cone Sul, a paisagem do Chaco argentino evoca esse cruzamento de generais loucos e de bandidos poderosos que atravessam os rios em busca de território, comércio, influência e glória.

Toda a América Latina está cheia dessas histórias – muitas delas fantásticas, a maior parte curiosas, todas elas cheias de personagens que entrariam na literatura. Acabo de ler, justamente, um romance do uruguaio Mario Delgado Aparaín (“No Robarás las Botas de los Muertos”) sobre a destruição da cidade de Paysandu às mãos de argentinos, brasileiros, generais loucos e mercenários esquizofrénicos. Os que leram os romances de García Marquez ou Vargas Llosa conhecem um pouco a galeria destes personagens.

O mundo anda distraído com o Médio Oriente por boas razões, mas a América Latina sempre me cativou, com a sua história trágica e também cheia de heroísmos tão intensos como as suas paisagens em que decorrem episódios protagonizados por loucos. A forma como os Estados Unidos trataram o continente e como os generais latino-americanos exerceram as suas ditaduras e reinados de terror, são factores nada menosprezáveis na história actual destes países. O maniqueísmo doentio que varre as cordilheiras latino-americanas, desde o México ao Chile é, hoje, o resultado desse confronto entre a arrogância dos EUA e o caudilhismo vagamente comunista, e muito mais vagamente inspirado em Bolívar. Há outros factores, certamente, mas o desenho geral corresponde a esse ressentimento. As ditaduras militares, do Chile à Nicarágua, da Guatemala ao Uruguai, passando pelo Paraguai e pela Argentina (e contabilizadas pelos EUA na sua guerra contra o comunismo), foram responsáveis por grande parte do alinhamento de intelectuais e de multidões anónimas ao lado de caudilhos clássicos, como Fidel Castro, ou de caudilhos populistas actuais, como o venezuelano Chávez. Muitos desses intelectuais desculparam tristemente a ditadura de Castro em nome dessa resistência contra os militares e os seus horrores, além de autorizarem a canonização de mitos perecíveis, como Guevara. Porém, os crimes passeiam de ambos os lados, confirmando a história da crueldade nas guerras locais, quer na de Farrapos (no Rio Grande do Sul brasileiro, com os seus episódios da degola), quer na da guerrilha colombiana.

A América Latina é hoje um continente que merece ser observado. Nasce aí um confronto entre a liberdade e o caudilhismo moderno, interpretado por Chávez ou Evo Morales, que inevitavelmente conduzirão os seus países ao desastre ou bem perto, como Lula conduziu o Brasil à maior onda de corrupção no país, bem superior à de Fernando Collor.

Provavelmente, nesse ambiente de perturbação e de equívocos, nenhum país efectuou de forma tão pacífica e produtiva a transição para a democracia como o Chile, graças ao papel desempenhado primeiro por Patricio Aylwin e depois por Ricardo Lagos, presidente até à eleição de Michele Bachelet. As esquerdas europeias, que piscam o olho ao arrivismo de Chávez e à indesmentível força simbólica da eleição de Morales na Bolívia, deveriam estudar o exemplo chileno. Talvez compreendessem que não podem ser radicais à distância, no conforto dos seus mitos fundadores, apenas vivos nas t-shirts de Guevara. Depois de amanhã, a América Latina voltará.

in Jornal de Notícias – 21 Agosto 2006

agosto 19, 2006

Noites de Cascais

Poucas mesas – mas uma luz delicada e tranquila. A Casa do Largo, em Cascais, liberta-se da sua memória e reabriu com mais apetite e conforto.

Ainda bem que já passaram aquelas vagas de canícula deste nosso lusitaníssimo Agosto que trouxeram noites irrespiráveis – sem um ventinho, um empurrão de fresco. Sei do que falo: de viver numa campânula aquecida pelas temperaturas do Verão. Embora raramente me falte o apetite, confesso que me indispõe o clima destemperado de Portugal que estudámos na escola da nossa adolescência.

Não sou, claramente, daqueles que acha que o calor é um inimigo do apetite, mas, enfim, reconheço a existência de uma predisposição, de, como dizem os brasileiros, “pintar um clima”. Ah, lembro agora: não me falem de clima.
Em Cascais existe, perto da Cidadela, um lugar aprazível: a Casa do Largo. Foi notícia de jornal há uns anos, não pelos motivos mais felizes (ah, conspirações da política & dos negócios!) – e reabriu recentemente com um novo projecto, nova decoração, novo ambiente e um cardápio feliz onde se distingue bem o que é almoço e o que é jantar. A sala de jantar, junto de janelas por onde se respira o ar da noite, é pequena mas confortável e bem iluminada. Num destes dias (noites), com um amigo, jantei muito agradavelmente na Casa do Largo – havia uma simpática lista de entradas onde pontificavam o pratinho de tomate com mozzarella, uma salada de bacalhau, peixe marinado em lima, tártaro de espadarte e salmão fumado, carpaccios (de polvo e de vitela) além de um “foie gras”, de um bom “chèvre” gratinado, de camarões salteados com alho e de duas primícias: os pimentos em azeite com migas e uns ovinhos mexidos com trompetes – saborosos e cheirosos, confirmei noutra noite a seguir.

A secção marítima divide-se em duas zonas – a do polvo, distribuída em polvinho panado com migas e polvo assado com batata à murro, e a do bacalhau, que alinha nas suas versões à Brás, assado com batatinhas ou sob o formato de pastéis (bolinhos estaladiços na verdade) com feijão frade, embora eu tenha comido um bacalhau à Romeu, síntese de uma das boas formas de preparar o peixe em Trás-os-Montes. Existe, aliás, uma razão para isso: os actuais responsáveis da Casa do Largo têm raízes transmontano-durienses e beirãs (foram responsáveis por uma magnífica unidade hoteleira em Penedono, onde se comia admiravelmente). Por isso, há sempre, além da lista normal e habitual da casa, um ou outro prato com genealogia nortenha. Agradece-se.

No capítulo das carnes, simplicidade: pastéis de massa tenra e saladas, uma vitela grelhada com batata, um suculento rosbife acompanhado de puré de batata, ‘magret’ de pato com puré de feijão (uma criação bastante recomendável), vitelinha das Alcáçovas com arroz de legumes e porco preto grelhado com milhos. Uma palavra sobre os milhos: são excelentes e valem a pena; em próxima visita vou pedi-los para acompanhar qualquer outro prato do cardápio, humedecidos, leves, transcendentes. Se alguém não alinhar no maniqueísmo carne & peixe, há ainda uma salada fria de arroz, uns cogumelos grelhados e perfumados de ervas com arroz de legumes e tofu gratinado com arroz árabe.

Escolhendo, para companhia, a opção de vinho a copo, isso permite provar com parcimónia e delicadeza algumas marcas decentíssimas (pena que não exista rosé a copo no Casa do Largo – um ‘Carm’ ficaria bem com algumas das entradas propostas…), e que antecedem um bolo de prata com doce de ovos, pudim conventual, bolo de chocolate (muito bom) e uma torta de noz também com doce de ovos além de um gelado de manga que muito recomendo. Para as noites serenas que se aproximam, e querendo suavizar a digestão, há uma boa lista de chás e tisanas.

O bar funciona até mais tarde que o restaurante propriamente dito, e fornece uma pequena lista de tira-gostos, petiscos e sanduíches (torradas com queijo fresco ou com ovos mexidos, picapau de lombo, tostas de rosbife ou de salmão, etc.) – tendo a decoração sido alterada e a casa arejada substancialmente, aí está um lugar descomprometido e apetitoso para o resto das nossas noites de Verão da Linha de Cascais.

À Lupa
Vinhos: * *
Digestivos: * * *
Acesso: * * *
Decoração: * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos Tintos: 52
Vinhos Brancos: 8
Vinhos Verdes: 6
Portos & Madeiras: 15
Uísques: 24
Aguardentes & Conhaques: 22

Outros dados
Charutos: Não
Estacionamento: Complicado (fácil à noite)
Levar Crianças: Não
Área Não Fumadores: Não
Reserva: Aconselhável ao almoço
Preço médio: 20 Euros
Cartões: MB, V, D, M, AM

Restaurante Casa do Largo
Largo da Assunção, 6 e 7
2750-298 CascaisTel: 21.831856 – 96 6189324
Encerra aos domingos
Jantares até às 00.00h

in Revista Notícias Sábado – 19 Agosto 2006

agosto 14, 2006

Diz alguma coisa de direita

Consideremos este aspecto essencial: felizmente terminou o “complexo de esquerda” de que toda a gente padecia. Há uns anos não se podia tomar uma posição pública (da decisão sobre o voto até à solidariedade com as doninhas ou a escolha de um livro) se a esquerda não autorizasse – para que não viesse alguém lembrar o pecado capital de haver uma marca “de direita”. Essa herança dos anos setenta, compreensível à luz dos acontecimentos e explicável pelos historiadores, foi aos poucos sendo desperdiçada quando se verificou que os maiores mitos da “bondade da esquerda” ruíam como qualquer outro e estavam destinados – também como qualquer outro – a perecer diante da ameaça da História e dos seus documentos. Muro de Berlim, Vietname, Cuba, o “guerrilheirismo” da América Latina, a salvação pelos Não-Alinhados, as “fantásticas realizações” do socialismo e até o destino da humanidade (que veria o capitalismo morrer às mãos do futuro): mitos, lendas e mentiras foram caindo.

A “educação cívica” do PREC e seus sucedâneos tentaram criar a ideia de que havia um “património genético da esquerda” ligado a palavras apaixonantes: solidariedade, generosidade, igualdade, distribuição equitativa da riqueza, eliminação da pobreza e, até, pasme-se, liberdade. À direita, estaria um desfile de horrores. Tamanho maniqueísmo tinha de ter um fim desgraçado – não há património genético que aguente tal desejo de pureza, além de existir uma diferença abissal entre as palavras, o seu significado e as realizações propriamente ditas. Daí até à contagem das vítimas, é um passo: os milhões de mortos do desvario estalinista e maoísta, os crimes de Pinochet e das ditaduras latino-americanas, a quantidade de pobres na América e a pobreza na ex-URSS, os fuzilamentos e torturas ordenados por Fidel e por Guevara, os crimes do colonialismo e dos regimes fantoches da CIA, o Terror na revolução francesa e o de Kim Il-Sung e de Kim-Jong-Il, o franquismo e o salazarismo – a lista é vasta e ninguém tem razões de queixa. Como o mundo não pode recomeçar do zero, temos aí um problema para resolver quando se fala de “património”. Assunto para outra discussão.

Acontece que a Direita quer agora promover os seus Estados Gerais. É uma ideia inteligente e, provavelmente, oportuna – com dois anos e meio de ciclo legislativo pela frente e um governo em quase permanente estado de graça (por grande virtude do primeiro-ministro e por culpa do PSD), era bom saber se existe uma Direita que não se envergonha de dizer o que pensa. Era bom saber se existe uma Direita capaz de encarar problemas actuais e de responder a perguntas sérias, até sobre o sexo dos anjos.

Há quem pense que o sexo dos anjos não tem interesse nenhum. Lamento desiludi-los, mas tem. A maneira como se fala do assunto tem muita importância. Falar sobre a OTA e o TVG, sobre a reforma do sistema penal ou da segurança social é importantíssimo. Mas também é importante saber se a Direita quer carregar consigo os seus “patrimónios genéticos” e os seus espartilhos – e falar para pessoas que já não existem – ou se admite abrir o seu cérebro para questões que a própria vida coloca hoje em dia.
Estamos a viver um tempo curioso. Há os que, à esquerda, têm medo de dizer alguma coisa de esquerda. E existe, à direita, o receio de dizer alguma coisa de direita. É natural: o eleitorado, esse paquiderme, move-se com extraordinária leveza num mundo em oscilação permanente. É isso que os assusta terrivelmente: perder o pé no meio do pântano que cada um criou ou deixou criar.

in Jornal de Notícias – 14 Agosto 2006

agosto 12, 2006

Pérola do Minho

Nas terras da Riba d'Ave, em Moreira de Cónegos, o São Gião devia ser considerado património nacional e incluído nos roteiros dos monumentos a visitar. Não é preciso dizer mais.

Cada um de nós tem um mapa particular para encenar. Um dos meus mapas é o do Minho, mas o leitor já se deu conta da falha. Chamo-lhe falha só por dizer - podia ser mais "geograficamente correc­to" e distribuir-me pelo país em peregrinações democráticas e igualitárias. Acontece que já tenho vícios entranhados, e não vale a pena fingir que ando na Volta a Portugal - gosto, portanto, de ir pelo Minho fora, pelo Minho dos meus desagrados (pai­sagem suburbana poluída como o resto do país, de­sordenada, arrasada às vezes) e pelo Minho que me encanta como um forasteiro embevecido, dando atenção ao recorte das árvores, ao verde do Verão, à paisagem abrigando o crepúsculo ou aqueles frag­mentos de costa marítima desenhados para um filme em busca de argumento.

Nessa matéria, argu­mentos não me faltam. Além do mais porque toda essa conversa me abre o apetite. Dito isto, entrei, campo fora, na pequena estradinha que leva a Moreira de Cónegos, porque sou cami­liano e tenho horas de almoço - disposto a visitar o São Gião, uma vasta e discreta casa mesmo diante do pequeno estádio do Moreirense (fica a indicação mais precisa, portanto), o que nem sempre me traz boas recordações. O maravilhamento começa à entrada, ao ver a luxuosa garrafeira climatizada que alberga um dos orgulhos da casa, como santa trans­portada debaixo do pálio - os leitores perdoarão a imagem, mas era dia de procissão numa aldeia pró­xima: cerca de quinze verdes distintos, quatro dezenas e meia de brancos portugueses, e um número a rondar os trezentos tintos bem escolhidos e para todos os gostos, incluindo uma secção de vi­nhos estrangeiros onde, se não escolho os dois Vega Sicília presentes, hei-de colher três chilenos de eleição e um italiano clássico. Mas os portugueses bastam.

Enquanto pensava nos novos vinhos que vêm da Argentina, do Chile e dos vinhedos de Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul, nada despre­záveis, vi que estávamos, à mesa, diante de um patê de santola, de um pratinho de pimentos 'padrón' e de uma alheira de caça e um salmão que, como os outros fumados do São Gião, são preparados na casa, que tem bom espaço para isso. Mas poderíamos ter escolhido um patê de fígado de ganso (o que eu gosto de eufemismos!) com molho de amora, um presunto bísaro, 'carpaccio' de boi, uma terrina de polvo, chouriço de mel, míscaros grelhados (que bons seriam), um peito de pato fumado ou mesmo ovos mexidos com espinafres, míscaros e gambas. Adiante. Adiante pelo peixe-galo com saladas, pelo 'risotto' de gambas, pelo bacalhau na brasa, pela massa fresca com gambas ou pelo polvo grelhado ou em filetes, servido com feijão-frade, além de outros peixes grelhados.

Sendo exemplar o cabrito no forno do São Gião bem como as suas tripas com feijão ou o capão assado, além do arroz de caracóis, a ementa de Verão é igual­mente supimpa: tem um cachaço de porco preto com molho de frutos secos, uma perdiz estufada, rabo de touro, uma pintada estufada com legumes e uvas, um saborosíssimo entrecosto de boi (tão raro de encontrar hoje em dia), os bifinhos de veado e a lista segue. O lombinho de cordeiro grelhado, com um suculento e apetitoso gratinado de cogumelos, estava generoso, perfumado e pedindo para ser comido. A empada de carnes variadas, com o embrulho gentil de massa, muito, muito boa - com aplauso. E o peito de pato grelhado com molho de vinagrete leva a designação de "superlativo" - deixou-me reduzido ao silêncio. Mas havia sobremesas: semifrios (de três chocolates, de avelãs, de amêndoas, de framboesa e de chocolate), além de um 'demi-cuit' com gelado de tangerina (um 'petit gateau' perfeito) e das canilhas com leite creme (uns canudinhos folhados muito próximos dos 'canolli' italianos), um 'strudel' (saltitante e crocante) com abundantes pinhões. E, honra lhe seja reservada, um pudim Abade de Priscos muito saboroso, rescendendo a excelente colesterol. Senti-me incapaz de ficar mais tempo. As vinhas, em redor, brilhavam. O céu pedia a palavra "esplendor". É pena, não é?

À Lupa
Vinhos: * * * *
Digestivos: * * *
Acesso: * * *
Decoração: * * *
Serviço: * * * *
Acolhimento: * * * *
Mesa: * * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * * *

Garrafeira
Vinhos Tintos: 300
Vinhos Brancos: 50
Vinhos Verdes: 15
Portos & Madeiras: 20
Uísques: 24
Aguardentes & Conhaques: 30

Outros dados
Charutos: Sim
Estacionamento: Fácil
Levar Crianças: Sim
Área Não Fumadores: Não
Reserva: Aconselhável ao fim-de-semana
Preço médio: 30 Euros
Cartões: MB, V, D, M, AM

SÃO GIÃO
R. Comendador loaquim de Almeida Freitas
Moreira de Cónegos
Tel: 253.561853
Encerra domingos ao jantar e à segunda-feira

in Revista Notícias Sábado – 12 Agosto 2006

agosto 11, 2006

Um conto

"O inspector Jaime Ramos, detective da Polícia Judiciária do Porto, faz uma investigação de rotina sobre o aparecimento de um cadáver totalmente queimado, retirado de um incêndio em Trás-os-Montes. No planalto transmontano, varrido pelo vento quente de Agosto que cobre de poeira a terra queimada, o que parecia um acidente acaba por revelar os contornos de um crime premeditado, cruel e perverso - em que estão envolvidos todos os personagens da história e a memória que regressa do passado para vingar um erro antigo. A história de um cadáver incómodo que lembra que nenhuma inocência é possível."

in "A Poeira que cai sobre a terra", Edição Revista Visão, Agosto de 2006 (à venda com a edição de 10 de Agosto de 2006).

agosto 07, 2006

Os hipócritas no poder

Parece que uma empresa irlandesa, a Dotcom Directories, publicou na imprensa um anúncio para recrutamento de pessoal, avisando (conta o "Financial Times") que os fumadores poderiam desde logo abster-se de concorrer. Uma eurodeputada trabalhista britânica, Catherine Stihler, questionou a Comissão Europeia acerca da legitimidade dessa restrição. É preciso dizer que a Comissão tem vindo a aprovar e a fazer aprovar pelo Parlamento Europeu um vasto conjunto de leis contra a discriminação com base no sexo, em diferenças étnicas, deficiências físicas, idade, práticas religiosas ou opção sexual de, por exemplo, candidatos ao emprego. A resposta do comissário europeu veio, célere não, eliminar fumadores (mesmo que não fumem no seu local de trabalho, evidentemente) numa candidatura a um emprego, não constitui discriminação. Uma ventania de insanidade percorre, com o seu rasto de hipocrisia, o pessoal de Bruxelas e do poder europeu hoje.

O patrão da Dotcom Directories considera - diz o jornal "Público" de ontem - que "fumar é idiota"; portanto, "os fumadores não têm o nível de inteligência" que ele entende necessário. Evidentemente que qualquer candidato a um emprego na Dotcom Directories poderá mentir; está no seu direito e constitui, mesmo, se for fumador, um dever moral. Não pode ver-se privado dos seus direitos pelo facto de, ao fim da tarde, no intervalo de almoço ou na sua vida privada, decidir fumar um cigarro ou um charuto. Portanto, vê-se na obrigação de mentir. Nenhum patrão, nenhum director, ninguém, tem a ver com o facto de, fora das horas de trabalho ou do horário social (em que existem regras de comportamento expressamente definidas), um cidadão poder fumar a sua cigarrilha. Que os hipócritas e tarados de Bruxelas aceitem vedar o emprego a um cidadão por ele fumar fora do local de trabalho, é a confirmação da insanidade.

O mundo está, inegavelmente, mais perigoso e idiota. Toda a gente quer meter-se na vida privada dos outros e as leis anti-tabaco, que me merecem toda a compreensão, são uma das guardas avançadas desse espírito persecutório que começa a crescer à nossa volta.

Evidentemente que estou de acordo com o princípio que preside às leis anti-tabaco. E defendo que não se deve poder fumar no interior de edifícios públicos. O projecto de lei português, que devia ser revisto por um psicanalista e um grupo de psicólogos (tais são a sanha persecutória e o radicalismo da sua proposta que vai banir o fumo dos restaurante e bares) é um desses casos de ditadura e de agressão cívica.

Conto-lhes uma história há uns anos, em Nova Iorque, no final de um seminário que ocupou cinco dias de trabalho, houve um jantar comemorativo. A comida era banal mas era festa. No final, enfiados em fatos de cerimónia e "smokings" (outra palavra que vai sair do nosso vocabulário), cinco almas mediterrânicas e mais uma dezena de americanos, rondávamos pelas salas do edifício em busca de uma sala para acender os nossos charutos. Nada. Até que um cidadão, solícito, veio buscar-nos e nos levou para uma sala onde havia, sobre uma mesa de vidro, alguns fios de cocaína que se destinavam aos convidados. Não recusei escandalizado; mas recusei (até hoje, aliás). Os meus pares fizeram o mesmo - mas um de nós disse: "Ah, isso não queremos, obrigado, mas se pudéssemos acender um charuto em algum lugar" O homenzinho recuou, como se tivesse visto o velho Satã: "Ah, fumar é proibido."

A seguir, quem tiver colesterol alto, pneu na barriga, ou gostar de feijoada, pode começar a temer pelo seu emprego a Comissão Europeia, tal como o desejo de Hitler, quer um homem novo, totalmente novo, higienizado e inodoro. E já estão no poder, os pequenos fascistas.

Jornal de Notícias - 7 Agosto 2006

agosto 05, 2006

À mesa do rei Artur

Onde começa o planalto nordestino começa também uma das tradições da posta mirandesa. Sejamos magnânimos: sabe bem e é generosa.

EU LEMBRO-ME bem da Linha do Sabor, essa que começava exactamente na aldeia onde eu vivi e terminava em Duas Igrejas que, pomposamente, era anunciada como “Duas Igrejas, Miranda”. Circulavam dois tipos de composição, nessa linha, subindo do Pocinho para Moncorvo em tons arrastados e, depois, passando pelo Carvalhal, por Urros, Felgar, Carviçais, Larinho, Bruçó, Lagoaça, Variz, Mogadouro, Freixo de Espada à Cinta, Sendim, por aí fora, em tons monocórdicos, ao sabor de planaltos, fragmentos de deserto, searas, oásis de castanheiros e cerejeiras. Um era o comboio regular, de carruagens verdes (e depois também azuis e laranjas) com a sua varandinha de ferro forjado onde melhor se colhia o perfume das montanhas, a fuligem da locomotiva a vapor, o cheiro de carvão queimado e o pó das colinas. Apetecia saltar da carruagem e acompanhar o comboio a pé. Outro era a velha automotora (inglesa, suponho), em “monovolume”, que dançava nos carris com mais velocidade, azul-escura, o “rápido do Sabor”. Ambos desapareceram há muito tempo, mas viajei bastante por esta linha. Moncorvo abastecia-me de jornais, de livros baratos e de cervejas nas esplanadas. Depois, sucumbindo ao deserto que tomou conta do Nordeste, as estações foram sendo transformadas, lentamente, em ruínas. Ignoro o destino da maior parte, mas tenho visto fotografias – e basta-me para magoar a memória.

Carviçais, a alguns quilómetros de Moncorvo, depois de passar pelo cenário fantástico e fantasmagórico das Minas do Carvalhal (impressionante como o lugar, central no volfrâmio português durante a II Guerra, não mereceu nem documentários, nem romances ou monografias), reacendeu o seu nome graças a um festival de Verão onde uns milhares se agitam ao som de música electrónica. Por muito que recorde as minhas passagens por Carviçais, nunca suporia que entrasse no mapa por esse motivo – música electrónica. Antes por isso do que por ter desaparecido do mapa.

O Artur foi outra das minhas referências naqueles lugares – também há muitos anos. Lembro-me do velhinho restaurante, desaconchegado, acanhado, barulhento e saboroso. Lembro-me do Artur intermédio, mais arejado. E conheço o novo Artur, preparado para os novos tempos. Prefiro o segundo, mas é destino meu. Houve tardes gloriosas naquelas salas: almoços de quatro e cinco horas, lentos e com digestão incluída, na altura em que se provava algum “vinho fino” de registo (sou, em geral, aviso, céptico em relação aos “vinhos finos”…) com amêndoas da zona. No entanto, as entradas (as entradinhas…) continuam a ser generosas, apetitosas, e o pão chega a ser uma obra de arte, quando não é fim-de-semana apertado com multidões a formar fila de espera. Alheirinha, linguiça ou chouriço grelhados, salpicão, azeitonas perfeitas e amargas (com um golpezinho para receber o aroma da laranja e das ervas), além de uma sopa tradicional muito “alimentícia” e olorosa, como veludo a preparar o esófago que me disseram existir no aparelho digestivo.

De registo nos pratos essenciais, dois: o bacalhau à lagareiro, especialidade da casa, muito bem servido, em posta generosa – e a posta à mirandesa, grelhada, mas com um molhinho que me reenvia à infância e à peregrinação pelas feiras da região, onde vi (e provei) postas superlativas, na brasa ou na sertã, e regadas com o molho feito do suco da própria carne, de alguma gordura remanescente e de um nadinha de vinagre ou de limão. Não é o procedimento mais tradicional nem o mais gabado – mas enquanto as confrarias não me multarem, continuarei a gostar do que gosto. Pois a posta do Artur é um exemplo e as variações dependem apenas do dia da semana, como disse. Já lá provei um cabrito no forno magnífico, acompanhado de umas das melhores batatas assadas da minha carreira, farinhentas, escorrendo azeite e sucos maravilhosos.

De uma das minhas visitas, terminadas, como de costume, com o bolo de amêndoa, e com vários digestivos, trago a memória de uma digestão de anjos, empurrada por um charuto que veio a calhar, fantástico. Estaria, nessa altura, preparado para a música electrónica de Carviçais? Duvido. Mas pouco me importaria.

À Lupa

Vinhos: * *
Digestivos: * *
Acesso: * * *
Decoração: * *
Serviço: * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * *
Ar condicionado: * *

Garrafeira
Vinhos Tintos: 60
Vinhos Brancos: 29
Portos & Madeiras: 6
Uísques: 14
Aguardentes & Conhaques: 16

Outros dados
Charutos: Não
Estacionamento: Fácil
Levar Crianças: Sim
Área Não Fumadores: Não
Reserva: Aconselhável ao fim-de-semana
Preço médio: 17 Euros

O Artur
Carviçais (Torre de Moncorvo)
Tel: 279 939 184

in Revista Notícias Sábado – 5 Agosto 2006

agosto 02, 2006

O peixe sem olho


Milorad Pavic é um autor pratica­mente desconhecido – mas não devia. Ele é o autor do Dicionário Khazar, um romance maravilhoso, publicado pela Dom Quixote em 1988. Não o designo como romance propriamente dito, mas é um livro de ficção admirável, inteligente e divertido, que trata dos khazares, um povo seminómada da Ásia Central que se converteu ao judaísmo por volta do sé­culo VIII. E um livro-enigma, um «romance-enciclopédia», como lhe chama o autor. Na verdade, é a transcrição de um livro que não existe, apresentado ao leitor como uma «reconstituição da pri­meira edição de Daubmannus (1691), destruída em 1692 e ampliada até aos dias de hoje» (que teria sido escrita em três línguas - hebraico, grego e árabe - o que teria impossibilitado, inclusive, que as en­tradas do dicionário apareçam por ordem alfabética). O autor esclarece no princí­pio: «Pode ser que lhe aconteça perder-se entre as palavras deste livro, como aconte­ceu com Massudi, um dos autores deste dicionário, que se perdeu nos sonhos de outra pessoa sem poder encontrar o cami­nho de volta.»

Uma das mais enigmáticas cita­ções que encontrei em todo o livro dizia respeito, imagine-se, ao esturjão: «Os khazares acreditam que nas profundezas escuras do mar Cáspio existe um peixe sem olho que marca, como um relógio, a única hora certa do uni­verso.» Durante anos procurei esse «peixe sem olho», dócil, venerando, antigo. Acabei por encontrá-lo num outro livro, Caviar, A Estranha História e o Futuro Incerto da Iguaria mais Cobiçada do Mundo, de Inga Saffron (edi­ção brasileira da Intrínseca). Conta a história do caviar, mostra como as ovas de esturjão tiveram influência em questões geopolíticas e como a cobiça está a destruir o peixe pré-histórico.

Não é um peixe qualquer: duzentos e cinquenta milhões de anos antes do surgimento dos seres humanos, os estur­jões já subiam os rios do planeta. Esses peixes, escreve Inga Saffron, são mais velhos do que os dinossauros. Os cien­tistas chamam-lhes fósseis vivos porque pouco mudaram ao longo dos
milénios.

Todo o livro é uma viagem espan­tosa pelo mundo do esturjão — e eu imagino-o, capturado no Volga, nas margens do Cáspio, as ovas retiradas para nosso absoluto prazer. Imagino-o também como essa relíquia pré-histórica, mais antiga que os dinossauros, procurando nas margens dos rios o lu­gar mais apropriado para desovar e rei­niciar a viagem para o mar, entre em­barcações vindas de Astrakhan, a mí­tica cidade da mítica Rota da Seda mas, também, a cidade onde nasceu a indústria do caviar.

Acontece que eu gosto de caviar. Desesperadamente – sem snobismos. Caviar e vodka gelado, tostas com manteiga e limão. Lembrem-se de Brideshead Revisited («Reviver o Passado em Brideshead») e daquela refeição esplêndida, de blinis com caviar, con­tada magistralmente por Evelyn Waugh: «As natas e a manteiga quen­te misturavam-se, separando, um a um, cada grão esverdeado de caviar, cobrindo-o de branco e dourado.»

Literatura é literatura, viagens po­dem ser viagens — e eu imagino a profundidade do mar Cáspio e sinto uma ternura desmesurada pelo esturjão, en­tretanto ameaçado de desaparecimen­to. Juncos nas margens dos rios. Cidades que interrompem a estepe gelada e lembram a chegada dos mongóis que conquistaram Moscovo. Cavalos cor­rendo pela tundra, na direcção do Norte. Ondas de espuma cinzenta no mar Cáspio. E a passagem dos khaza­res, que, tal como os xiitas primitivos, se recusavam a comer esturjão (e as suas ovas deliciosas) por ele não ser um peixe kosher ou halal (Khomeini, depois da revolução, decretou - por ra­zões económicas - que o esturjão, sim senhor, era «limpo»). E imagino uma viagem até ao fim da história.

in Outro Hemisfério – Revista Volta ao Mundo – Agosto 2006