Questões de moral
1. O campeonato de futebol português começou como se impunha: com a algaraviada do costume e, pelo menos, dois jogos suspensos por causa da chamada “justiça desportiva”, essa canalhice que se atropelou durante meses por causa do chamado “caso Mateus”. Fosse por causa de um penalti mal assinalado ou por uma das normais e triviais declarações do chamado “dirigismo desportivo”, e compreender-se-ia o burburinho, que devia ser relegado para o seu lugar: a antecâmara do lixo. Mas não. O “caso Mateus” envolve juízes, desembargadores, gente da Liga, pessoal da Federação, reacções da UEFA ou da FIFA, interpretadores da lei, legisladores acometidos de esquizofrenia e o habitual desfile de comunicados, exigências e decisões contraditórias entre a assim designada “justiça desportiva” e os “tribunais comuns”.
Há quem pense que se trata de futebol apenas e que, portanto, o assunto se resolverá entre Gil Vicente, Belenenses e agora parece que com o Leixões. Não é só futebol. Basta ver o que aconteceu com a trapalhada da eleição do novo presidente da Liga de Futebol Profissional e respectiva impugnação para perceber que não se trata apenas de bola – tem a ver, também, com o baixo carácter que rodeia o mundo do futebol e das suas pequenas mas vistosas e escorregadias jogadas de corredor. Estado dentro de outro Estado, o futebol está mal frequentado e merece limpeza. Arrivistas, canalhas, gente boçal, má gramática – alguma forma de limpeza devia ser feita nesse submundo triste e empertigado. O que também incomoda, de resto, é essa participação de “doutores juízes” que aceitam julgar mal e associar-se à má justiça.
Não sei se é correcto ou não o recurso do futebol para os “tribunais comuns”, que são incapazes de apreciar um fora-de-jogo ou uma cotovelada, mas dado o descalabro profundamente amoral que vagabundeia na “justiça desportiva”, com gente (juízes e juristas!, faço notar) produzindo sentenças de acordo com conveniências detectáveis – é bom que sejam postos na rua. Para que ganhe o jogo quem marca mais golos e para que seja reduzida ao seu papel insignificante a canalha que conduziu a “justiça desportiva” a este caos. Eu sei que a vida segue, como de costume. Mas podemos insultá-los, ao menos.
2. Günther Grass, escritor alemão, prémio Nobel, foi durante anos considerado a “consciência moral da Alemanha” em luta com o seu passado nazi e contra os fantasmas que periodicamente despertam desse pesadelo; de alguma maneira associou-se à patrulha ideológica e política que vigiava os seus concidadãos e, também, os artistas que tinham atravessado a vida do III Reich.
Ao longo dos anos, Grass escondeu que ele próprio tinha pertencido às SS e à sua divisão especialmente mais sinistra, as Waffen-SS (ou seja, o braço militar do partido nazi). Tinha 17 anos. Sessenta e um anos depois, o autor de “O Tambor” confessou que tinha pertencido às Waffen-SS e pediu desculpa, inclusive à sua cidade natal, Gdansk. Naturalmente, levantou-se uma polémica sobre o assunto: Grass devia devolver o Nobel, nunca mais devia ser lido, etc. Parolices que varreram a Europa durante uma semana.
O que o episódio prova é o seguinte: primeiro, que Grass devia, sim, ter confessado mais cedo a sua passagem pelas SS – talvez a sua literatura, do ponto de vista testemunhal, tivesse beneficiado com a revelação; segundo, que a vida dos patrulheiros mais rigorosos e dos polícias da “moral política” alheia, como Grass foi, tem sempre um triste fim: o de serem desacreditados mais tarde ou mais cedo. Pessoalmente, não o acuso – aos 17 anos, na Alemanha de então, Grass seguiu os passos de milhares de alemães da sua geração. Mas confirma-se que se deve desconfiar desta gente que aceita vestir a pele de “consciência moral”. A vida segue, como de costume.
in Jornal de Notícias - 28 Agosto 2006
Há quem pense que se trata de futebol apenas e que, portanto, o assunto se resolverá entre Gil Vicente, Belenenses e agora parece que com o Leixões. Não é só futebol. Basta ver o que aconteceu com a trapalhada da eleição do novo presidente da Liga de Futebol Profissional e respectiva impugnação para perceber que não se trata apenas de bola – tem a ver, também, com o baixo carácter que rodeia o mundo do futebol e das suas pequenas mas vistosas e escorregadias jogadas de corredor. Estado dentro de outro Estado, o futebol está mal frequentado e merece limpeza. Arrivistas, canalhas, gente boçal, má gramática – alguma forma de limpeza devia ser feita nesse submundo triste e empertigado. O que também incomoda, de resto, é essa participação de “doutores juízes” que aceitam julgar mal e associar-se à má justiça.
Não sei se é correcto ou não o recurso do futebol para os “tribunais comuns”, que são incapazes de apreciar um fora-de-jogo ou uma cotovelada, mas dado o descalabro profundamente amoral que vagabundeia na “justiça desportiva”, com gente (juízes e juristas!, faço notar) produzindo sentenças de acordo com conveniências detectáveis – é bom que sejam postos na rua. Para que ganhe o jogo quem marca mais golos e para que seja reduzida ao seu papel insignificante a canalha que conduziu a “justiça desportiva” a este caos. Eu sei que a vida segue, como de costume. Mas podemos insultá-los, ao menos.
2. Günther Grass, escritor alemão, prémio Nobel, foi durante anos considerado a “consciência moral da Alemanha” em luta com o seu passado nazi e contra os fantasmas que periodicamente despertam desse pesadelo; de alguma maneira associou-se à patrulha ideológica e política que vigiava os seus concidadãos e, também, os artistas que tinham atravessado a vida do III Reich.
Ao longo dos anos, Grass escondeu que ele próprio tinha pertencido às SS e à sua divisão especialmente mais sinistra, as Waffen-SS (ou seja, o braço militar do partido nazi). Tinha 17 anos. Sessenta e um anos depois, o autor de “O Tambor” confessou que tinha pertencido às Waffen-SS e pediu desculpa, inclusive à sua cidade natal, Gdansk. Naturalmente, levantou-se uma polémica sobre o assunto: Grass devia devolver o Nobel, nunca mais devia ser lido, etc. Parolices que varreram a Europa durante uma semana.
O que o episódio prova é o seguinte: primeiro, que Grass devia, sim, ter confessado mais cedo a sua passagem pelas SS – talvez a sua literatura, do ponto de vista testemunhal, tivesse beneficiado com a revelação; segundo, que a vida dos patrulheiros mais rigorosos e dos polícias da “moral política” alheia, como Grass foi, tem sempre um triste fim: o de serem desacreditados mais tarde ou mais cedo. Pessoalmente, não o acuso – aos 17 anos, na Alemanha de então, Grass seguiu os passos de milhares de alemães da sua geração. Mas confirma-se que se deve desconfiar desta gente que aceita vestir a pele de “consciência moral”. A vida segue, como de costume.
in Jornal de Notícias - 28 Agosto 2006