agosto 14, 2006

Diz alguma coisa de direita

Consideremos este aspecto essencial: felizmente terminou o “complexo de esquerda” de que toda a gente padecia. Há uns anos não se podia tomar uma posição pública (da decisão sobre o voto até à solidariedade com as doninhas ou a escolha de um livro) se a esquerda não autorizasse – para que não viesse alguém lembrar o pecado capital de haver uma marca “de direita”. Essa herança dos anos setenta, compreensível à luz dos acontecimentos e explicável pelos historiadores, foi aos poucos sendo desperdiçada quando se verificou que os maiores mitos da “bondade da esquerda” ruíam como qualquer outro e estavam destinados – também como qualquer outro – a perecer diante da ameaça da História e dos seus documentos. Muro de Berlim, Vietname, Cuba, o “guerrilheirismo” da América Latina, a salvação pelos Não-Alinhados, as “fantásticas realizações” do socialismo e até o destino da humanidade (que veria o capitalismo morrer às mãos do futuro): mitos, lendas e mentiras foram caindo.

A “educação cívica” do PREC e seus sucedâneos tentaram criar a ideia de que havia um “património genético da esquerda” ligado a palavras apaixonantes: solidariedade, generosidade, igualdade, distribuição equitativa da riqueza, eliminação da pobreza e, até, pasme-se, liberdade. À direita, estaria um desfile de horrores. Tamanho maniqueísmo tinha de ter um fim desgraçado – não há património genético que aguente tal desejo de pureza, além de existir uma diferença abissal entre as palavras, o seu significado e as realizações propriamente ditas. Daí até à contagem das vítimas, é um passo: os milhões de mortos do desvario estalinista e maoísta, os crimes de Pinochet e das ditaduras latino-americanas, a quantidade de pobres na América e a pobreza na ex-URSS, os fuzilamentos e torturas ordenados por Fidel e por Guevara, os crimes do colonialismo e dos regimes fantoches da CIA, o Terror na revolução francesa e o de Kim Il-Sung e de Kim-Jong-Il, o franquismo e o salazarismo – a lista é vasta e ninguém tem razões de queixa. Como o mundo não pode recomeçar do zero, temos aí um problema para resolver quando se fala de “património”. Assunto para outra discussão.

Acontece que a Direita quer agora promover os seus Estados Gerais. É uma ideia inteligente e, provavelmente, oportuna – com dois anos e meio de ciclo legislativo pela frente e um governo em quase permanente estado de graça (por grande virtude do primeiro-ministro e por culpa do PSD), era bom saber se existe uma Direita que não se envergonha de dizer o que pensa. Era bom saber se existe uma Direita capaz de encarar problemas actuais e de responder a perguntas sérias, até sobre o sexo dos anjos.

Há quem pense que o sexo dos anjos não tem interesse nenhum. Lamento desiludi-los, mas tem. A maneira como se fala do assunto tem muita importância. Falar sobre a OTA e o TVG, sobre a reforma do sistema penal ou da segurança social é importantíssimo. Mas também é importante saber se a Direita quer carregar consigo os seus “patrimónios genéticos” e os seus espartilhos – e falar para pessoas que já não existem – ou se admite abrir o seu cérebro para questões que a própria vida coloca hoje em dia.
Estamos a viver um tempo curioso. Há os que, à esquerda, têm medo de dizer alguma coisa de esquerda. E existe, à direita, o receio de dizer alguma coisa de direita. É natural: o eleitorado, esse paquiderme, move-se com extraordinária leveza num mundo em oscilação permanente. É isso que os assusta terrivelmente: perder o pé no meio do pântano que cada um criou ou deixou criar.

in Jornal de Notícias – 14 Agosto 2006