Depois de amanhã, a América Latina
Um encontro de escritores trouxe-me ao Chaco – no norte da Argentina, entre o Rio Paraná e a fronteira com o Paraguai, e na estrada que, para o Norte longínquo, entrará depois na Bolívia. Quem conhece alguma coisa da América Latina sabe que a Guerra do Chaco, ocorrida nos anos trinta do século passado, é um dos pontos altos do conflito entre a Bolívia e o Paraguai pelo acesso ao oceano Pacífico. Se bem que nem a Argentina nem o Chile tenham a ver com ela, disputada pelos dois países mais pobres do chamado Cone Sul, a paisagem do Chaco argentino evoca esse cruzamento de generais loucos e de bandidos poderosos que atravessam os rios em busca de território, comércio, influência e glória.
Toda a América Latina está cheia dessas histórias – muitas delas fantásticas, a maior parte curiosas, todas elas cheias de personagens que entrariam na literatura. Acabo de ler, justamente, um romance do uruguaio Mario Delgado Aparaín (“No Robarás las Botas de los Muertos”) sobre a destruição da cidade de Paysandu às mãos de argentinos, brasileiros, generais loucos e mercenários esquizofrénicos. Os que leram os romances de García Marquez ou Vargas Llosa conhecem um pouco a galeria destes personagens.
O mundo anda distraído com o Médio Oriente por boas razões, mas a América Latina sempre me cativou, com a sua história trágica e também cheia de heroísmos tão intensos como as suas paisagens em que decorrem episódios protagonizados por loucos. A forma como os Estados Unidos trataram o continente e como os generais latino-americanos exerceram as suas ditaduras e reinados de terror, são factores nada menosprezáveis na história actual destes países. O maniqueísmo doentio que varre as cordilheiras latino-americanas, desde o México ao Chile é, hoje, o resultado desse confronto entre a arrogância dos EUA e o caudilhismo vagamente comunista, e muito mais vagamente inspirado em Bolívar. Há outros factores, certamente, mas o desenho geral corresponde a esse ressentimento. As ditaduras militares, do Chile à Nicarágua, da Guatemala ao Uruguai, passando pelo Paraguai e pela Argentina (e contabilizadas pelos EUA na sua guerra contra o comunismo), foram responsáveis por grande parte do alinhamento de intelectuais e de multidões anónimas ao lado de caudilhos clássicos, como Fidel Castro, ou de caudilhos populistas actuais, como o venezuelano Chávez. Muitos desses intelectuais desculparam tristemente a ditadura de Castro em nome dessa resistência contra os militares e os seus horrores, além de autorizarem a canonização de mitos perecíveis, como Guevara. Porém, os crimes passeiam de ambos os lados, confirmando a história da crueldade nas guerras locais, quer na de Farrapos (no Rio Grande do Sul brasileiro, com os seus episódios da degola), quer na da guerrilha colombiana.
A América Latina é hoje um continente que merece ser observado. Nasce aí um confronto entre a liberdade e o caudilhismo moderno, interpretado por Chávez ou Evo Morales, que inevitavelmente conduzirão os seus países ao desastre ou bem perto, como Lula conduziu o Brasil à maior onda de corrupção no país, bem superior à de Fernando Collor.
Provavelmente, nesse ambiente de perturbação e de equívocos, nenhum país efectuou de forma tão pacífica e produtiva a transição para a democracia como o Chile, graças ao papel desempenhado primeiro por Patricio Aylwin e depois por Ricardo Lagos, presidente até à eleição de Michele Bachelet. As esquerdas europeias, que piscam o olho ao arrivismo de Chávez e à indesmentível força simbólica da eleição de Morales na Bolívia, deveriam estudar o exemplo chileno. Talvez compreendessem que não podem ser radicais à distância, no conforto dos seus mitos fundadores, apenas vivos nas t-shirts de Guevara. Depois de amanhã, a América Latina voltará.
in Jornal de Notícias – 21 Agosto 2006
Toda a América Latina está cheia dessas histórias – muitas delas fantásticas, a maior parte curiosas, todas elas cheias de personagens que entrariam na literatura. Acabo de ler, justamente, um romance do uruguaio Mario Delgado Aparaín (“No Robarás las Botas de los Muertos”) sobre a destruição da cidade de Paysandu às mãos de argentinos, brasileiros, generais loucos e mercenários esquizofrénicos. Os que leram os romances de García Marquez ou Vargas Llosa conhecem um pouco a galeria destes personagens.
O mundo anda distraído com o Médio Oriente por boas razões, mas a América Latina sempre me cativou, com a sua história trágica e também cheia de heroísmos tão intensos como as suas paisagens em que decorrem episódios protagonizados por loucos. A forma como os Estados Unidos trataram o continente e como os generais latino-americanos exerceram as suas ditaduras e reinados de terror, são factores nada menosprezáveis na história actual destes países. O maniqueísmo doentio que varre as cordilheiras latino-americanas, desde o México ao Chile é, hoje, o resultado desse confronto entre a arrogância dos EUA e o caudilhismo vagamente comunista, e muito mais vagamente inspirado em Bolívar. Há outros factores, certamente, mas o desenho geral corresponde a esse ressentimento. As ditaduras militares, do Chile à Nicarágua, da Guatemala ao Uruguai, passando pelo Paraguai e pela Argentina (e contabilizadas pelos EUA na sua guerra contra o comunismo), foram responsáveis por grande parte do alinhamento de intelectuais e de multidões anónimas ao lado de caudilhos clássicos, como Fidel Castro, ou de caudilhos populistas actuais, como o venezuelano Chávez. Muitos desses intelectuais desculparam tristemente a ditadura de Castro em nome dessa resistência contra os militares e os seus horrores, além de autorizarem a canonização de mitos perecíveis, como Guevara. Porém, os crimes passeiam de ambos os lados, confirmando a história da crueldade nas guerras locais, quer na de Farrapos (no Rio Grande do Sul brasileiro, com os seus episódios da degola), quer na da guerrilha colombiana.
A América Latina é hoje um continente que merece ser observado. Nasce aí um confronto entre a liberdade e o caudilhismo moderno, interpretado por Chávez ou Evo Morales, que inevitavelmente conduzirão os seus países ao desastre ou bem perto, como Lula conduziu o Brasil à maior onda de corrupção no país, bem superior à de Fernando Collor.
Provavelmente, nesse ambiente de perturbação e de equívocos, nenhum país efectuou de forma tão pacífica e produtiva a transição para a democracia como o Chile, graças ao papel desempenhado primeiro por Patricio Aylwin e depois por Ricardo Lagos, presidente até à eleição de Michele Bachelet. As esquerdas europeias, que piscam o olho ao arrivismo de Chávez e à indesmentível força simbólica da eleição de Morales na Bolívia, deveriam estudar o exemplo chileno. Talvez compreendessem que não podem ser radicais à distância, no conforto dos seus mitos fundadores, apenas vivos nas t-shirts de Guevara. Depois de amanhã, a América Latina voltará.
in Jornal de Notícias – 21 Agosto 2006
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