O peixe sem olho
Milorad Pavic é um autor praticamente desconhecido – mas não devia. Ele é o autor do Dicionário Khazar, um romance maravilhoso, publicado pela Dom Quixote em 1988. Não o designo como romance propriamente dito, mas é um livro de ficção admirável, inteligente e divertido, que trata dos khazares, um povo seminómada da Ásia Central que se converteu ao judaísmo por volta do século VIII. E um livro-enigma, um «romance-enciclopédia», como lhe chama o autor. Na verdade, é a transcrição de um livro que não existe, apresentado ao leitor como uma «reconstituição da primeira edição de Daubmannus (1691), destruída em 1692 e ampliada até aos dias de hoje» (que teria sido escrita em três línguas - hebraico, grego e árabe - o que teria impossibilitado, inclusive, que as entradas do dicionário apareçam por ordem alfabética). O autor esclarece no princípio: «Pode ser que lhe aconteça perder-se entre as palavras deste livro, como aconteceu com Massudi, um dos autores deste dicionário, que se perdeu nos sonhos de outra pessoa sem poder encontrar o caminho de volta.»
Uma das mais enigmáticas citações que encontrei em todo o livro dizia respeito, imagine-se, ao esturjão: «Os khazares acreditam que nas profundezas escuras do mar Cáspio existe um peixe sem olho que marca, como um relógio, a única hora certa do universo.» Durante anos procurei esse «peixe sem olho», dócil, venerando, antigo. Acabei por encontrá-lo num outro livro, Caviar, A Estranha História e o Futuro Incerto da Iguaria mais Cobiçada do Mundo, de Inga Saffron (edição brasileira da Intrínseca). Conta a história do caviar, mostra como as ovas de esturjão tiveram influência em questões geopolíticas e como a cobiça está a destruir o peixe pré-histórico.
Não é um peixe qualquer: duzentos e cinquenta milhões de anos antes do surgimento dos seres humanos, os esturjões já subiam os rios do planeta. Esses peixes, escreve Inga Saffron, são mais velhos do que os dinossauros. Os cientistas chamam-lhes fósseis vivos porque pouco mudaram ao longo dos
milénios.
Todo o livro é uma viagem espantosa pelo mundo do esturjão — e eu imagino-o, capturado no Volga, nas margens do Cáspio, as ovas retiradas para nosso absoluto prazer. Imagino-o também como essa relíquia pré-histórica, mais antiga que os dinossauros, procurando nas margens dos rios o lugar mais apropriado para desovar e reiniciar a viagem para o mar, entre embarcações vindas de Astrakhan, a mítica cidade da mítica Rota da Seda mas, também, a cidade onde nasceu a indústria do caviar.
Acontece que eu gosto de caviar. Desesperadamente – sem snobismos. Caviar e vodka gelado, tostas com manteiga e limão. Lembrem-se de Brideshead Revisited («Reviver o Passado em Brideshead») e daquela refeição esplêndida, de blinis com caviar, contada magistralmente por Evelyn Waugh: «As natas e a manteiga quente misturavam-se, separando, um a um, cada grão esverdeado de caviar, cobrindo-o de branco e dourado.»
Literatura é literatura, viagens podem ser viagens — e eu imagino a profundidade do mar Cáspio e sinto uma ternura desmesurada pelo esturjão, entretanto ameaçado de desaparecimento. Juncos nas margens dos rios. Cidades que interrompem a estepe gelada e lembram a chegada dos mongóis que conquistaram Moscovo. Cavalos correndo pela tundra, na direcção do Norte. Ondas de espuma cinzenta no mar Cáspio. E a passagem dos khazares, que, tal como os xiitas primitivos, se recusavam a comer esturjão (e as suas ovas deliciosas) por ele não ser um peixe kosher ou halal (Khomeini, depois da revolução, decretou - por razões económicas - que o esturjão, sim senhor, era «limpo»). E imagino uma viagem até ao fim da história.
in Outro Hemisfério – Revista Volta ao Mundo – Agosto 2006
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