agosto 02, 2006

O peixe sem olho


Milorad Pavic é um autor pratica­mente desconhecido – mas não devia. Ele é o autor do Dicionário Khazar, um romance maravilhoso, publicado pela Dom Quixote em 1988. Não o designo como romance propriamente dito, mas é um livro de ficção admirável, inteligente e divertido, que trata dos khazares, um povo seminómada da Ásia Central que se converteu ao judaísmo por volta do sé­culo VIII. E um livro-enigma, um «romance-enciclopédia», como lhe chama o autor. Na verdade, é a transcrição de um livro que não existe, apresentado ao leitor como uma «reconstituição da pri­meira edição de Daubmannus (1691), destruída em 1692 e ampliada até aos dias de hoje» (que teria sido escrita em três línguas - hebraico, grego e árabe - o que teria impossibilitado, inclusive, que as en­tradas do dicionário apareçam por ordem alfabética). O autor esclarece no princí­pio: «Pode ser que lhe aconteça perder-se entre as palavras deste livro, como aconte­ceu com Massudi, um dos autores deste dicionário, que se perdeu nos sonhos de outra pessoa sem poder encontrar o cami­nho de volta.»

Uma das mais enigmáticas cita­ções que encontrei em todo o livro dizia respeito, imagine-se, ao esturjão: «Os khazares acreditam que nas profundezas escuras do mar Cáspio existe um peixe sem olho que marca, como um relógio, a única hora certa do uni­verso.» Durante anos procurei esse «peixe sem olho», dócil, venerando, antigo. Acabei por encontrá-lo num outro livro, Caviar, A Estranha História e o Futuro Incerto da Iguaria mais Cobiçada do Mundo, de Inga Saffron (edi­ção brasileira da Intrínseca). Conta a história do caviar, mostra como as ovas de esturjão tiveram influência em questões geopolíticas e como a cobiça está a destruir o peixe pré-histórico.

Não é um peixe qualquer: duzentos e cinquenta milhões de anos antes do surgimento dos seres humanos, os estur­jões já subiam os rios do planeta. Esses peixes, escreve Inga Saffron, são mais velhos do que os dinossauros. Os cien­tistas chamam-lhes fósseis vivos porque pouco mudaram ao longo dos
milénios.

Todo o livro é uma viagem espan­tosa pelo mundo do esturjão — e eu imagino-o, capturado no Volga, nas margens do Cáspio, as ovas retiradas para nosso absoluto prazer. Imagino-o também como essa relíquia pré-histórica, mais antiga que os dinossauros, procurando nas margens dos rios o lu­gar mais apropriado para desovar e rei­niciar a viagem para o mar, entre em­barcações vindas de Astrakhan, a mí­tica cidade da mítica Rota da Seda mas, também, a cidade onde nasceu a indústria do caviar.

Acontece que eu gosto de caviar. Desesperadamente – sem snobismos. Caviar e vodka gelado, tostas com manteiga e limão. Lembrem-se de Brideshead Revisited («Reviver o Passado em Brideshead») e daquela refeição esplêndida, de blinis com caviar, con­tada magistralmente por Evelyn Waugh: «As natas e a manteiga quen­te misturavam-se, separando, um a um, cada grão esverdeado de caviar, cobrindo-o de branco e dourado.»

Literatura é literatura, viagens po­dem ser viagens — e eu imagino a profundidade do mar Cáspio e sinto uma ternura desmesurada pelo esturjão, en­tretanto ameaçado de desaparecimen­to. Juncos nas margens dos rios. Cidades que interrompem a estepe gelada e lembram a chegada dos mongóis que conquistaram Moscovo. Cavalos cor­rendo pela tundra, na direcção do Norte. Ondas de espuma cinzenta no mar Cáspio. E a passagem dos khaza­res, que, tal como os xiitas primitivos, se recusavam a comer esturjão (e as suas ovas deliciosas) por ele não ser um peixe kosher ou halal (Khomeini, depois da revolução, decretou - por ra­zões económicas - que o esturjão, sim senhor, era «limpo»). E imagino uma viagem até ao fim da história.

in Outro Hemisfério – Revista Volta ao Mundo – Agosto 2006