O pequeno escândalo
Parece que, nos meios políticos, académicos, suburbanos e paraliterários, vai um burburinho surdo e indignado. Quando esta gente se indigna, eu quero saber porquê. Interessa-me a hipocrisia.Desta vez há um livro, o de Maria Filomena Mónica, intitulado “Bilhete de Identidade” (edição Alêtheia).
Ora, o que conta o livro? Nada de mais, nada que não suspeitássemos e nada que envergonhe o género humano. São as suas memórias, coisa que acontece as pessoas decentes terem.Ao contrário de outros países em que as pessoas escrevem as memórias para que os seus contemporâneos as leiam (quem quiser, obviamente), Portugal escandaliza-se frequentemente com o facto. As pessoas contam nas suas memórias apenas o que lhes interessa, obviamente. Espera-se que um estadista revele telefonemas, mistérios da política, segredos de bastidores ou, até, pensamentos profundos – se lhe calha tê-los. Mas que a coisa não ande longe da verdade.
Filomena Mónica não é uma estadista. É uma socióloga, uma académica que escreveu vários livros e artigos. Lamentavelmente para a pequena intelligentsia, Filomena Mónica escreve bem, escreve claramente, estudou em Oxford e tem a coragem de dizer o que pensa, mesmo quando não pensa grande coisa. Graças a ela pudemos, em várias ocasiões, ser confrontados com a miserável mediocridade do sistema de ensino que há anos era inatacável. Nunca lhe perdoaram.As suas memórias não são o retrato maneirista de uma personagem em busca de glória. Se assim fosse, o livro não revelaria ingenuidades de adolescência, fragilidades da idade adulta e perdições comuns ao género humano. O livro seria, apenas, muito bem comportado.
Acontece que, oh Portugal de plástico e de esferovite, o livro diz nomes, conta coisas, refere datas. Em Portugal não se dizem nomes (usam-se iniciais ou deixa-se a suspeita), não se contam muitas coisas nem se referem datas. Não se incomodam as pessoas, tratando-as pelo seu nome, chamando António ao António e tratando-se Genoveva por Genoveva. Não. Em Portugal limitamo-nos a sugerir infâmias anónimas e baixarias de “alguém”.Maria Filomena Mónica, por absoluta e sincera ingenuidade, disse os nomes de pessoas que conheceu, com quem viveu, que a conheceram. As virgens do jornalismo, da moral familiar e da academia acham isto indigno. Não porque Maria Filomena Mónica lhes aponte indignidades – no livro as pessoas são naturais, humaníssimas e simpáticas. Mas porque ela abriu as portas do armário onde estão reunidos anos e anos de esqueletos e de aprendizagens. E de indignidades, sim, admito. E de segredos que geralmente não se confessam.
Ora, acontece que as pessoas acham que nunca são hipócritas nem indignas. Acham que são perfeitas, impolutas, intocáveis e indiscutíveis em absoluto. Acontece que não são. Que não somos. As pessoas são indiscutíveis para lá de certos limites, sim, definidos pelo costume e até pela lei. Mas o retrato de conjunto oferecido por Maria Filomena Mónica não ultrapassa esse limite. Não reavaliaremos a obra de nenhum autor à luz dessas revelações, a menos que sejamos patetas.
O que o livro de Filomena Mónica retrata é um pedaço da sua vida: a menina de Cascais (sim, a “beta” de Cascais – qual é o mal?) e a adolescente que lê Evelyn Waugh enquanto bebe conhaque num colégio londrino. A mulher que comete adultério durante o fascismo e que fica com mais do que um grão na asa ao jantar com um famoso professor de Oxford. A que deambula pelos corredores do curso de Filosofia e comenta a beleza dos rapazes. A que se desilude com a política e com a vida doméstica.
O que ficámos a saber, com o seu livro, é que aquela gente até tinha um certo grau de humanidade, de palermice e de generosidade. E é isso que indigna tantos sacerdotes. Ser humano incomoda muita gente.
Ora, o que conta o livro? Nada de mais, nada que não suspeitássemos e nada que envergonhe o género humano. São as suas memórias, coisa que acontece as pessoas decentes terem.Ao contrário de outros países em que as pessoas escrevem as memórias para que os seus contemporâneos as leiam (quem quiser, obviamente), Portugal escandaliza-se frequentemente com o facto. As pessoas contam nas suas memórias apenas o que lhes interessa, obviamente. Espera-se que um estadista revele telefonemas, mistérios da política, segredos de bastidores ou, até, pensamentos profundos – se lhe calha tê-los. Mas que a coisa não ande longe da verdade.
Filomena Mónica não é uma estadista. É uma socióloga, uma académica que escreveu vários livros e artigos. Lamentavelmente para a pequena intelligentsia, Filomena Mónica escreve bem, escreve claramente, estudou em Oxford e tem a coragem de dizer o que pensa, mesmo quando não pensa grande coisa. Graças a ela pudemos, em várias ocasiões, ser confrontados com a miserável mediocridade do sistema de ensino que há anos era inatacável. Nunca lhe perdoaram.As suas memórias não são o retrato maneirista de uma personagem em busca de glória. Se assim fosse, o livro não revelaria ingenuidades de adolescência, fragilidades da idade adulta e perdições comuns ao género humano. O livro seria, apenas, muito bem comportado.
Acontece que, oh Portugal de plástico e de esferovite, o livro diz nomes, conta coisas, refere datas. Em Portugal não se dizem nomes (usam-se iniciais ou deixa-se a suspeita), não se contam muitas coisas nem se referem datas. Não se incomodam as pessoas, tratando-as pelo seu nome, chamando António ao António e tratando-se Genoveva por Genoveva. Não. Em Portugal limitamo-nos a sugerir infâmias anónimas e baixarias de “alguém”.Maria Filomena Mónica, por absoluta e sincera ingenuidade, disse os nomes de pessoas que conheceu, com quem viveu, que a conheceram. As virgens do jornalismo, da moral familiar e da academia acham isto indigno. Não porque Maria Filomena Mónica lhes aponte indignidades – no livro as pessoas são naturais, humaníssimas e simpáticas. Mas porque ela abriu as portas do armário onde estão reunidos anos e anos de esqueletos e de aprendizagens. E de indignidades, sim, admito. E de segredos que geralmente não se confessam.
Ora, acontece que as pessoas acham que nunca são hipócritas nem indignas. Acham que são perfeitas, impolutas, intocáveis e indiscutíveis em absoluto. Acontece que não são. Que não somos. As pessoas são indiscutíveis para lá de certos limites, sim, definidos pelo costume e até pela lei. Mas o retrato de conjunto oferecido por Maria Filomena Mónica não ultrapassa esse limite. Não reavaliaremos a obra de nenhum autor à luz dessas revelações, a menos que sejamos patetas.
O que o livro de Filomena Mónica retrata é um pedaço da sua vida: a menina de Cascais (sim, a “beta” de Cascais – qual é o mal?) e a adolescente que lê Evelyn Waugh enquanto bebe conhaque num colégio londrino. A mulher que comete adultério durante o fascismo e que fica com mais do que um grão na asa ao jantar com um famoso professor de Oxford. A que deambula pelos corredores do curso de Filosofia e comenta a beleza dos rapazes. A que se desilude com a política e com a vida doméstica.
O que ficámos a saber, com o seu livro, é que aquela gente até tinha um certo grau de humanidade, de palermice e de generosidade. E é isso que indigna tantos sacerdotes. Ser humano incomoda muita gente.
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