O medo é que é perigoso
Vamos directos ao assunto o dr. Mário Soares informou o país que a eleição de Cavaco Silva é "perigosa". Tamanha novidade merecia atenção redobrada. Meses antes, o antigo presidente da República tinha esclarecido a Imprensa estrangeira sobre os perigos que vivia a nossa democracia, afirmando que só não havia um golpe militar porque éramos membros da União Europeia. Também já tínhamos sido esclarecidos, por pessoas que lhe são próximas, sobre como era perigoso votar em Cavaco Silva e que isso representaria uma hipótese, digamos, de regresso ao passado - quem sabe se ao fascismo, dado a nossa democracia estar tão periclitante. Há dias, considerou "uma tragédia" a eleição de Cavaco. Antes de anunciar a sua candidatura, um pouco antes, o ex-presidente informara-nos que José Sócrates, com os seus ares modernos, os seus fatos elegantes, a sua moderação equilibrada e a sua insistência nas tecnologias, era perigoso - e que não passava de uma reciclagem do pior guterrismo. Que seria, suponho, uma espécie de líder de esferovite. Nos últimos dois anos temos sido sucessivamente informados, pelo dr. Mário Soares, sobre perigos e tragédias iminentes. Infelizmente para o autor das profecias, algumas delas não se realizaram e as que podem realizar-se não são tragédias; pelo contrário. A sua pontaria tem diminuído. Só assim se explica que José Sócrates seja agora visto como alguém com garra e que se digam coisas ditirâmbicas sobre António Guterres. É, suponho, um intervalo - a interrupção deve-se à campanha eleitoral, durante a qual se devem apontar todas as armas para "o monstro". O monstro é Cavaco.
Anteontem, depois das declarações de Cavaco Silva a este jornal, gerou-se uma tal onda de queixinhas e de indignações que qualquer cidadão seria levado a suspeitar de que alguma coisa estaria errada. Está. O que está errado é o clima de medo em que querem transformar estas eleições. Esta pobre estratégia populista parte do princípio que os portugueses são um bando de medricas ou de crianças que é preciso proteger a todo o custo de perigos imaginários e de tragédias improváveis. Esse medo é que é perigoso - é o medo da democracia, no fundo. Em todas essas queixinhas que se ouviram durante o dia (com aquele ar escandalizado das virgens velhas das peças de Lorca) não se viu uma ideia, um combate, uma prova de que Cavaco estava errado. Limitaram-se a aparecer em bicos de pés, lembrando "a tragédia" e "o perigo" que rondam a vida dos portugueses, esses ignorantes que deram a vitória a Sócrates e se manifestam por Cavaco.
Ora, o que a candidatura de Cavaco (para temor de soaristas e de cavaquistas) vem fazer, no fundo, independentemente de si mesmo, é interromper um ciclo conservador onde o "republicanismo" se sobrepõe aos "valores republicanos" e onde as manobras de bastidor são sempre mais importantes do que a clareza das ideias que se exprimem. Ao acusarem Cavaco de todas as ignomínias apenas porque ele se limitou a sugerir uma medida da mais elementar eficácia governativa (que ninguém discutiu, de resto), os seus adversários apressaram-se a acenar com banalidades e com a existência de "indícios", mostrando claramente o seu jogo a aposta no medo.
A penosa campanha eleitoral em curso, longa de mais, mostrará até ao fim esse tom de dramatização e de perseguição populista, de insinuação. Por detrás disso está o medo. Não o medo de Cavaco, mas o medo da própria democracia e do jogo claro que ela devia impor e tornar necessário. De dedinho espetado, indignado, esse medo é que é perigoso e reaccionário. E, além do mais, pretende fazer dos portugueses gente sem discernimento ou inteligência.
Jornal de Notícias - 29 Dezembro 2005
Anteontem, depois das declarações de Cavaco Silva a este jornal, gerou-se uma tal onda de queixinhas e de indignações que qualquer cidadão seria levado a suspeitar de que alguma coisa estaria errada. Está. O que está errado é o clima de medo em que querem transformar estas eleições. Esta pobre estratégia populista parte do princípio que os portugueses são um bando de medricas ou de crianças que é preciso proteger a todo o custo de perigos imaginários e de tragédias improváveis. Esse medo é que é perigoso - é o medo da democracia, no fundo. Em todas essas queixinhas que se ouviram durante o dia (com aquele ar escandalizado das virgens velhas das peças de Lorca) não se viu uma ideia, um combate, uma prova de que Cavaco estava errado. Limitaram-se a aparecer em bicos de pés, lembrando "a tragédia" e "o perigo" que rondam a vida dos portugueses, esses ignorantes que deram a vitória a Sócrates e se manifestam por Cavaco.
Ora, o que a candidatura de Cavaco (para temor de soaristas e de cavaquistas) vem fazer, no fundo, independentemente de si mesmo, é interromper um ciclo conservador onde o "republicanismo" se sobrepõe aos "valores republicanos" e onde as manobras de bastidor são sempre mais importantes do que a clareza das ideias que se exprimem. Ao acusarem Cavaco de todas as ignomínias apenas porque ele se limitou a sugerir uma medida da mais elementar eficácia governativa (que ninguém discutiu, de resto), os seus adversários apressaram-se a acenar com banalidades e com a existência de "indícios", mostrando claramente o seu jogo a aposta no medo.
A penosa campanha eleitoral em curso, longa de mais, mostrará até ao fim esse tom de dramatização e de perseguição populista, de insinuação. Por detrás disso está o medo. Não o medo de Cavaco, mas o medo da própria democracia e do jogo claro que ela devia impor e tornar necessário. De dedinho espetado, indignado, esse medo é que é perigoso e reaccionário. E, além do mais, pretende fazer dos portugueses gente sem discernimento ou inteligência.
Jornal de Notícias - 29 Dezembro 2005
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