dezembro 02, 2005

Exercício de recordações

Há na viagem - e na distância em relação às coisas - uma soma incontrolável de recordações. Mais recordações do que memórias. Explico: a memória tem uma certa lógica; as recordações são fragmentos, enumerações, retratos, coisas sem nexo, As minhas memórias vêm desde a infância, ordenadas e passando de um calendário a outro, de uma casa a outra, de uma paisagem a outra. As minhas recordações são instantes de sorte, adversidade, paixão. Muitas delas têm a ver com a viagem e eu esforço-me por não Ihes dar nem ordem nem sentido: coisas sem importância, cães ladrando no pampa brasileiro, rente aos lagos; a extraordinária beleza do silêncio em altitudes inesperadas, para Iá dos trópicos; uma mulher caminhando pelas ruas de Buenos Aires; o ruído das florestas e dos comboios atravessando a Noruega; a fragilidade das pontes de madeira cruzando precipícios nos Andes; o mar do Belize; os meus pulmões resistindo enquanto subia as pirâmides do México meridio­nal; uma música escutada numa praça enquanto todo o álcool do mundo se reunia na minha mesa, numa esplanada em Oaxaca; um autocarro de turistas, desses de city tour, atravessan­do Nova lorque; um barco solitário ocupado por um pescador ainda mais solitário no lago diante da abadia de Killermore, na Irlanda, debaixo da chuva miúda e entre a luz do nevoeiro; o ruído dos grilos na noite de Bis­sau; o vento do fim da tarde no Índico, diante de Madagáscar; as varandas de árvores sem nome em Ermera, Timor.

Todos temos essas recordações - até mais, muito mais, do que essa memória catalogada. Somos muito esses fragmentos e essas travessias de ferry en­tre margens de um lago ou de um rio. A nossa cultura ocidental, muito ensaística, obriga-nos frequentemente a ser correctos em demasia - e a não dar importância a esse caos que povoa a nossa imaginação, as fotografias nas paredes e as gavetas onde guardamos lixo avulso. Ora, as viagens precisam de um pouco de desordem.
Conheço viajantes notáveis, mui­to organizados e preparados. Antes de partirem, coleccionam os endereços de monumentos indiscutíveis, os telefones de restaurantes e os horários dos museus. Têm horários e disciplina, leituras e método. Qualquer coisa me diz que Ihes falta alguma coisa: essa desordem amorosa que transforma a viagem em descoberta pura e desperta para o acaso, o inesperado, as sombras de uma paisagem, a chuva nas ruas de uma cidade, uma caminhada de quilómetros no meio do frio. Eu, que já encontrei académicos a discutir filosofia à beira do lago Myvatn (sentados diante daquela conjugação irregular de pseudo-crateras, protegida pelo glaciar), na Islândia, e pescadores balineses que me cozinharam um dos melhores arrozes de lagostim de que tenho memória, atribuo isso à desordem de grande parte das minhas viagens. Em Buenos Aires, sento-me nos cafés inesperados antes de ir ao Tortoni; em Dublin, vou ao primeiro pub antes de ir ao O'Donoghues. Há nisso um prazer irregular e contagiante, quando a companhia de viagem é apropriada. A disciplina fica em casa. Os bons hábitos reservam-se para a nossa vida. A viagem é outra vida, necessariamente.

Provavelmente, quando encontra-mos aquele lugar, queríamos que fosse o lugar da nossa vida. Mas a nossa vida é isto. Alguns atribuem algum grau de infelicidade ao facto de a nossa vida ser isto. Não se iludam: se a nossa vida fos­se essa outra coisa, não gozaríamos tanto as viagens, não procuraríamos nelas a desordem afectuosa que os nossos dias comuns não comportam. Deixem as coisas corno estão. As recordações também nos fazem felizes

in Outro Hemisfério – Revista Volta ao Mundo – Dezembro 2005