dezembro 02, 2005

Pérolas da Turquia








Bolinhas trabalhadas com aromas e texturas de contrastes destinadas a enriquecer a vulgar carne picada: eis os keftes.




Na tradição dos judeus sefarditas, a Turquia representa uma memória grata e, muitas vezes, aprazível. A diferença explica-se facilmente. A gratidão testemunha a enorme quantidade de fugitivos, exilados e emigrantes judeus fugidos da Península Ibérica, da Europa e da Inquisição - e que encontraram na velha Constantinopla um lugar de refugio e de tolerância. Muitos Portugueses procuraram esse cruzamento entre o Oriente e o Ocidente. a luz do Mediterrâneo, para escapar às perseguições e à demência que tinha tomado de assalto os reinos atlânticos.

De entre as varias tradições acumuladas nessa memória sefardita, a gastronómica, ou apenas alimentar, não é das menos importantes. Pelo contrario: ela dá conta dos laços que prendem essa memória aos antigos territórios de origem, a Sefarad (a Península Ibérica) e as formas como, em qualquer lugar, havia uma adaptação aos lugares onde a diáspora assentava.

À Turquia, pois. E aos keftes de espinaka, para retomar a expressão original como ela era grafada nessa língua franca e musical em que se exprimiam os exilados. O que são os keftes? Bolinhas trabalhadas com aromas e texturas de contraste que se destinam a enriquecer um material pobre como é a carne moída, ou picada. Devo dizer, também, que o essencial neste prato não é a carne - mas o conjunto obtido com a carne e os espinafres.

Posso explicar corno faço em minha casa: numa panela com água a ferver, temperada de sal, mergulho durante dois minutos dois molhos de espinafres a que tirei apenas os talos mais grossos enquanto os lavava. Escorro e espremo as verduras, disponho-as numa tábua e pico com uma faca, em pedaços não muito pequenos. Aproveito a agua onde ferveram para demolhar umas três fatias de pão caseiro sem côdea. Numa taça ou tigela (do tamanho de uma saladeira, por exemplo) misturo os espinafres aferventados com dois ovos inteiros, uma cebo­la roxa picada muito finamente, as fatias de pão já demolhado, e a carne picada (originalmente, esta devia ser de borrego - mas reconheço que toda a gente prefere a de vaca; seja, pois, a de vaca), além de sal e pimenta a gosto. Eu acrescento um nadinha de cominhos secos e de cebolinho. Em dias de grande euforia, junto uma colher de chá de canela em pó. Mas isso sou eu, o leitor que proceda de acordo com o seu gosto, porque as variantes alimentares do Mediterrâneo aceitam muito bem as contribuições do Oriente. De seguida, começo por dividir, em porções do tamanho de uma almôndega, toda essa massa que misturei com as mãos e amassei durante uns minutos de forma a conseguir uma composição homogénea. Caso a massa esteja liquida, junto um pouco de pão ralado até conseguir a consistência desejada (por isso é que os espinafres devem ser muito bem espremidos). Então, passo as bolinhas de carne por farinha, primeiro, e ovo batido, depois, e frito-as ligeiramente em óleo. O objective é que fiquem douradas, sim, mas sobretudo com aquela solidez requerida pela operação seguinte: numa caçarola larga, servir um pouco de azeite (na tradição judaica não se podem misturar lacticínios com carne, daí não se usar manteiga na receita original, mas pode faze-lo em casa), deixar aquecer, juntar as bolinhas previamente fritas, acrescentar sumo de dois limões, agitar bem, e cobrir com a massa de quatro tomates maduros reduzidos a pasta no liquidificador. Agitar de novo. Espalhar uma co­lher de sobremesa de açúcar. Voltar a agitar. Deixar cozinhar em lume brando até que o molho fique mais solido.
Geralmente, sirvo com arroz branco, mas o leitor considerará - com alguma margem de tolerância - o seu apetite.

Ingredientes
+ 400 g de carne picada uma só vez
+ 2 molhos de espinafres frescos
+ 2 limões
+ 1 cebola roxa
+ Sal, pimenta. açúcar. farinha e azeite nas porções indicadas
+ 4 ovos (2 para a receita, 2 para usar antes da fritura)
+ 3 fatias de pão caseiro
+ tomates maduros
+ Óleo para fritar


in Atlas de Cozinha – Revista Volta ao Mundo – Dezembro 2005