dezembro 28, 2005

O México, ao acaso

O Canon del Sumidero, em Chiapas, no México, é uma das grandes obras da natureza. Sei isso porque me aproximei duas vezes das suas ravinas, e uma delas de noite, quando - num velho Volkswagen verde e amolgado - percorria a estrada que vai de Tuxtla Gutierrez, à capital do estado, a San Cristobal de las Casas. Não é um bom caminho para se fazer de noite, é verdade, sobretudo porque, na época, em 1994, os militares montavam barricadas de 20 em 20 quilómetros para fiscalizar os carros, aborrecer jornalistas e, marginalmente, encontrar guerrilheiros zapatistas.

Seja como for, o México teve sempre esse perfume de revoluções, sobressaltos, tiroteios, poeira levantada do chão, cavaleiros que percorrem os desfiladeiros e viajantes que pernoitam em cidades quase abandonadas. Eu fui destes últimos e o Canon del Sumidero a minha fronteira com o irreal. Explico. Durante toda a minha adolescência, e certamente na do leitor que anda pelos quarenta, ou um nadinha mais, o México era exactamente esse território. O general Francisco Villa e Emiliano Zapata enchiam todos os filmes dessa memória, tal como o futebol. E havia a grande aventura. Havia aquele número inusitado de viajantes que atravessava a fronteira do Texas ou da Califórnia para se perder numa pequena cidade do interior ou num hotel vagamente instalado a beira do Pacifico. Havia o viejo gringo. Depois, com mais idade, havia a literatura — de D. H. Lawrence (o de Serpente Emplumada) a Graham Greene (o de O Poder e a Gloria), de Malcolm Lowry (o de Debaixo do Vulcão) aos autores mexicanos que romperam o isolamento: Juan Rulfo (Pedro Páramo é um dos grandes romances contemporâneos e o fundador do chamado «realismo magico latino-americano»), Octavio Paz, Carlos Fuentes. Escuso de falar do cinema, claro (pese embora ser quase sempre o olhar americano, o olhar do gringo, sobre o silêncio mexicano). Mas falaria da música: só com a idade os mariachis se tomaram encantadores e perderam aquele ar vagamente ridículo e mortal. Mas os boleros imortais de Augustín Lara operaram milagres depois de ouvir pela primeira vez Noches de Veracruz, ou Consuelo Velazquez, Gabriel Ruiz, as composições de Vicente Garrido ou de Gonzalo Curiel e tantos outros.

O México, explico, foi uma libertação. Raras viagens foram tão comoventes e cheias de revelações. Eu tinha lido Artaud e sabia o suficiente dessa misteriosa Frida Kahlo por quem nunca consegui apaixonar-me depois de ver a obra de Diego Rivera. Mas o prazer da viagem nunca foi tão inten­so - justamente porque se tratava de andar perdido, totalmente perdido. As longas distâncias foram sempre um remédio para temperamentos impacientes. Tomar um autocarro na ca­pital, com destino a Oaxaca ou a Gua­dalajara, era sempre uma tarefa monumental, coisa para vários dias de via­gem, atravessando vulcões extintos e planícies desertas, o rigor da noite fria ou o calor que arrancava suor pela tarde fora, no meio da poeira e das vozes sobressaltadas de anónimos companheiros de viagem. Lamentei sem­pre aqueles que reduziram a sua viagem mexicana as praias de Cancún. E, de entre estes, aqueles que não entenderam o apelo do Grande Golfo, daquele grande mar que toca Merida, Campeche, ali bem no Sul.

Por isso, o Canon del Sumidero, onde dizem que voa o quetzal (teria de ser numa floresta assim, de verde intenso, exuberante, escura) e onde se perde o jaguar, foi sempre uma fron­teira implacável. Atravessei-o a cami­nho do México do Pacifico, quando os areais se prolongam para que surfistas ou casais aventureiros pernoitem à vontade. E atravessei-o para encontrar o México que nunca vinha nem nas paginas dos jornais nem nos programas turísticos, profundo, distante, talvez pobre, sim, mas comovente e inamovível. Essa foi a minha fronteira: entre o México e o México. Quando me perguntam que país mais mudou a minha maneira de viajar, eu penso no México.

in Outro hemisfério – Revista Volta ao Mundo – Janeiro 2006