agosto 25, 2005

O fogo obsceno

O Governo não tem culpa pelo facto de o país arder; isto não é uma grande novidade. A responsabilidade pelos 180 mil hectares de árvores, mato, floresta, vinhas, olival, amendoal, pomar, hortas, canavial, dejectos, porcaria, erva que arderam, neste Verão, não deve ser atribuída ao Governo. Já o combate aos incêndios, se revela hesitação e manobras para esconder a verdade, depende do Governo.

Na verdade, Portugal não arde por motivos obscuros e metafísicos e sim porque há aquecimento global, porque os pinhais e eucaliptais infestaram o país e não são limpos, porque o Estado não tem dinheiro para cuidar das florestas, porque há incendiários à solta e porque não existe uma lei que puna exemplarmente esse crime contra a comunidade, porque não há meios aéreos suficientes, porque o acesso aos montes que desaparecem entre labaredas não é fácil, porque há poucos bombeiros profissionais, porque Portugal não gosta de árvores - e as deixa ao abandono, aqui e ali, rodeadas de lixeiras.

Sabemos todos que, em 1998 e em 2003, Portugal ardeu mais do que este ano, até agora. Portugal ardeu, proporcionalmente, mais do que a Amazónia. Em termos absolutos, ardeu mais do que Espanha.

O Governo não tem culpa de Portugal ser consumido pelas chamas. Ninguém de bom senso dirá que o Governo, só por ser socialista, é culpado pela desgraça. Por isso mesmo, é estranho recapitular o dia-a-dia das últimas semanas e ver que a primeira reacção do Governo foi, precisamente, a de dizer que não tinha culpa.

Este princípio subdesenvolvido, primário e imbecil, de que todas as desgraças devem ser atribuídas ao Governo, acabou por minar o próprio Governo. José Sócrates regressou de férias e, com aquele ar de quem decreta a tranquilidade só por estar presente, anunciou que não se tratava de calamidade. A Pampilhosa, Coimbra, Viseu, o Alvão e Santa Luzia ardiam.

Criou-se, no país inteiro, a ideia de que sofremos de falta de confiança. Infelizmente, a auto-estima, a confiança e a tranquilidade não substituem o ressentimento e a alarvidade só por serem mencionadas. Precisam de gestos nobres e intensos, verdadeiros, até dramáticos; precisam de números claros e de apelos sérios. Pelo contrário, a atitude do Governo diante dos incêndios não ajudou.

Em vez de encarar o desenho de um país a arder e de intervir com determinação, o Governo alinhou nesse cenário tentou limitar, até onde pôde, o drama dos incêndios. Como se fosse culpa sua as matas arderem e como se dependesse do gesto de Sócrates (ou de António Costa) as chamas suspenderem o seu avanço.

Para quem leu a imprensa estrangeira de anteontem, o retrato era tudo menos pacificador. Os aviões e equipas de estrangeiros, as imagens lancinantes de chamas e de colunas de fumo - tudo negava o desmentido de que a realidade não era ou foi assustadora (e, na verdade, só depois da chegada de Sócrates se mobilizaram meios internacionais para combater os incêndios).

É triste verificar que o debate entre Governo e Oposição passa pela discussão em torno dos números de hectares ardidos. Essa lengalenga miserável e grotesca mostra até que ponto se tornou obsceno o debate político.

O Governo perdeu uma batalha importante, em matéria de credibilidade. Quando devia ter aparecido a dizer "sim, a realidade é dramática", e encarado a situação de frente, pedindo ajuda, reunindo apoios, houve quem tentasse tergiversar, iludir as imagens e, mesmo, censurá-las.

Caso não tenham notado, foi mais um capital de confiança que desapareceu. Que ardeu na fogueira obscena da política portuguesa.

Jornal de Notícias - 25 de Agosto de 2005