Uma proposta de viagem pelo sul
A ideia de que o Brasil e um território dominado a sul pelas colinas de Itacaré, pela baía de Ilhéus e pelo mar picadinho de Trancoso, e a norte pelas dunas de Jericoacoara ou os restaurantes de praia entre Pipa e Natal, é profundamente injusta e resulta de um erro de perspectiva grave dos Portugueses actuais, matraqueados pela industria turística e pela preguiça. Se compreendo a indústria turística, já a preguiça acho, neste caso, uma coisa perigosa: trata-se de viajar.
E viajar, ao contrario do que pensavam os bons iluministas europeus, não contribui apenas para melhorar a nossa índole, o nosso conhecimento e a nossa capacidade de pensar; além disso tudo, faz bem a pele e é um bem para a saúde. Lamento se isto não interessa a feitios intelectuais.
Uma das afirmações mais absurdas que se podem escutar no nosso país, sobretudo de quem foi duas vezes ao Brasil, é a de que «isto é o verdadeiro Brasil». Por dois motivos: primeiro, porque não há «o verdadeiro Brasil»; segundo, porque, o Brasil não existe - em vez de Brasil há Brasis. Os Brasis. Era assim que muitos autores do nosso século XIX se referiam ao imenso mapa que falava português abaixo do Equador e de S. José de Macapá, para não dizer, entre as barreiras verdes e densas do Oiapoque (ligeiramente acima de S. José de Macapá, umas oito horas de estrada poeirenta até à fronteira com a Guiana), e as neblinas do pampa, rente ao Uruguai, lá no Chuí. Conheço os dois pontos. São lugares espantosos, sobretudo porque, na mesma altura do ano, as temperaturas chegam a atingir 40 graus centígrados de diferença. Esta é a prova exacta de que não existe apenas um Brasil. Nem dois, sequer. Por isso, quando alguém me obriga a escutar uma batucada e diz «isto é a verdadeira música do Brasil», eu rio e proponho uma chula ou um fandango da serra gaúcha, um violão gemendo em Goiás ou uma canção de Lupicínio Rodrigues, o negro de Porto Alegre. Onde está o verdadeiro Brasil?
Eu tenho os meus. Talvez um deles seja Salvador, sim, para contentar apetites ancestrais e aquele desejo de exotismo que nos surpreende a todos. Mas também o verdadeiramente interior Brasil de Minas Gerais, de Ouro Preto. Diamantina, Tiradentes (e Belo Horizonte, sim). E o outro é o meu Brasil de São Paulo, vertiginoso, culto, voraz, cosmopolita, a cidade onde melhor se come no mundo. E o do Rio, também, apetitoso, artificial. E o de Porto Alegre, a cidade das arvores, cheia de sotaques. Nada tem sido tão prejudicial ao Brasil como este exagero de Nordeste, reduzindo o mapa a um aglomerado de resorts baianos e de artesanato do aeroporto de Fortaleza. Para Nordeste já dei.
Por isso, ao arrepio das convenções, eu recomendo o sul. Santa Catarina e Florianópolis, evidentemente, se puder ser, De contrário, o mais distante do Brasil nordestino: o sul, o grande sul. Porto Alegre é uma cidade belíssima, «europeia», cheia do charme dos seus escritores (Scliar, Tabajara Ruas, Veríssimo, Noll, Assis Brasil - e a poesia de Mário Quintana) e dos seus músicos (Vítor Ramil, CIáudio Levitan, Nei Lisboa), dos seus restaurantes como dos seus hábitos. Eu gosto desses hábitos: ser do Grémio, tomar chimarrão na Redenção, ser apanhado pelo entardecer diante do Guaíba, beber o melhor chope do mundo (no Liliput concerteza, cremoso, gelado, cheio de nuvens - mas também aquele outro, delicioso, do Dado Bier), comer no Copacabana ou no Gambrinus, passear no Bonfim ou em Moinhos de Vento. Depois, tomar a serra gaúcha; sair para Gramado, desviar-se de Canela e chegar a São Francisco de Paula, onde faz mesmo frio, e verdadeiro, nesta altura do ano. Com coragem e brio, avançar ate Cambará do Sul e São José dos Ausentes, no meio de «canyons», florestas, vento - e regressar uns dias depois, passando por Bento Gonçalves para saborear os novos vinhos do Brasil (sim, quem disse que "o verdadeiro Brasil» só tem cerveja?), nas colinas húmidas que sobem para Caxias. São vinhos que aprendem, lentamente, a ganhar vida. Daqui a alguns anos, se eu conheço os brasileiros, esses vinhos estarão aí, e eu quero estar preparado.
Lamento não vos falar da beleza aplaudida do pôr-do-sol no Leblon e do folclore habitual de belezas retratáveis, de Olinda a Ipanema, do Pelourinho soteropolitano (ah, o que eu gosto desta palavra!) à Academia Brasileira de Letras. Mas já é a altura de conhecer alguma coisa mais.
Jornal de Letras – 17 Agosto de 2005
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