agosto 19, 2005

Uma proposta de viagem pelo sul


A ideia de que o Brasil e um território dominado a sul pelas colinas de Itacaré, pela baía de Ilhéus e pelo mar picadinho de Trancoso, e a norte pelas dunas de Jericoacoara ou os restaurantes de praia entre Pipa e Natal, é profundamente injusta e resulta de um erro de perspectiva grave dos Portugueses actuais, matraqueados pela industria turística e pela preguiça. Se compreendo a indústria turística, já a preguiça acho, neste caso, uma coisa perigosa: trata-se de viajar.
E viajar, ao contrario do que pensavam os bons iluministas europeus, não contribui apenas para melhorar a nossa índole, o nosso conhecimento e a nossa capacidade de pensar; além disso tudo, faz bem a pele e é um bem para a saúde. Lamento se isto não interessa a feitios intelectuais.

Uma das afirmações mais absurdas que se podem escutar no nosso país, sobretudo de quem foi duas vezes ao Brasil, é a de que «isto é o verdadeiro Brasil». Por dois motivos: primeiro, porque não há «o verdadeiro Brasil»; segundo, porque, o Brasil não existe - em vez de Brasil há Brasis. Os Brasis. Era assim que muitos autores do nosso século XIX se referiam ao imenso mapa que falava português abaixo do Equador e de S. José de Macapá, para não dizer, entre as barreiras verdes e densas do Oiapoque (ligeiramente acima de S. José de Macapá, umas oito horas de estrada poeirenta até à fronteira com a Guiana), e as neblinas do pampa, rente ao Uruguai, lá no Chuí. Conheço os dois pontos. São lugares espantosos, sobretudo porque, na mesma altura do ano, as temperaturas chegam a atingir 40 graus centígrados de diferença. Esta é a prova exacta de que não existe apenas um Brasil. Nem dois, sequer. Por isso, quando alguém me obriga a escutar uma batucada e diz «isto é a verdadeira música do Brasil», eu rio e proponho uma chula ou um fandango da serra gaúcha, um violão gemendo em Goiás ou uma canção de Lupicínio Rodrigues, o negro de Porto Alegre. Onde está o verdadeiro Brasil?

Eu tenho os meus. Talvez um deles seja Salvador, sim, para contentar apetites ancestrais e aquele desejo de exotismo que nos surpreende a todos. Mas também o verdadeiramente interior Brasil de Minas Gerais, de Ouro Preto. Diamantina, Tiradentes (e Belo Horizonte, sim). E o outro é o meu Brasil de São Paulo, vertiginoso, culto, voraz, cosmopolita, a cidade onde melhor se come no mundo. E o do Rio, também, apetitoso, artificial. E o de Porto Alegre, a cidade das arvores, cheia de sotaques. Nada tem sido tão prejudicial ao Brasil como este exagero de Nordeste, reduzindo o mapa a um aglomerado de resorts baianos e de artesanato do aeroporto de Fortaleza. Para Nordeste já dei.

Por isso, ao arrepio das convenções, eu recomendo o sul. Santa Catarina e Florianópolis, evidentemente, se puder ser, De contrário, o mais distante do Brasil nordestino: o sul, o grande sul. Porto Alegre é uma cidade belíssima, «europeia», cheia do charme dos seus escritores (Scliar, Tabajara Ruas, Veríssimo, Noll, Assis Brasil - e a poesia de Mário Quintana) e dos seus músicos (Vítor Ramil, CIáudio Levitan, Nei Lisboa), dos seus restaurantes como dos seus hábitos. Eu gosto desses hábitos: ser do Grémio, tomar chimarrão na Redenção, ser apanhado pelo entardecer diante do Guaíba, beber o melhor chope do mundo (no Liliput concerteza, cremoso, gelado, cheio de nuvens - mas também aquele outro, delicioso, do Dado Bier), comer no Copacabana ou no Gambrinus, passear no Bonfim ou em Moinhos de Vento. Depois, tomar a serra gaúcha; sair para Gramado, desviar-se de Canela e chegar a São Francisco de Paula, onde faz mesmo frio, e verdadeiro, nesta altura do ano. Com coragem e brio, avançar ate Cambará do Sul e São José dos Ausentes, no meio de «canyons», florestas, vento - e regressar uns dias depois, passando por Bento Gonçalves para saborear os novos vinhos do Brasil (sim, quem disse que "o verdadeiro Brasil» só tem cerveja?), nas coli­nas húmidas que sobem para Caxias. São vinhos que aprendem, lentamente, a ganhar vida. Daqui a alguns anos, se eu conheço os brasileiros, esses vinhos estarão aí, e eu quero estar preparado.

Lamento não vos falar da beleza aplaudida do pôr-do-sol no Leblon e do folclore habitual de belezas retratáveis, de Olinda a Ipanema, do Pelourinho soteropolitano (ah, o que eu gosto desta palavra!) à Academia Brasileira de Letras. Mas já é a altura de conhecer alguma coisa mais.

Jornal de Letras – 17 Agosto de 2005