agosto 18, 2005

Regresso a casa

Eu conheci os colonos de Neve Dekalim, Netzarim, Atzmona, Kfar Derom, Shirat Hayam, Netzer Hazani ou Rafiah Yam. Vi como viviam. Algumas dessas comunidades estabeleceram-se muitos anos antes de 1948 nesse território de dunas, quase deserto. Outros, depois de 1967 e da Guerra dos Seis Dias. Outros, como os de Atzmona, vieram do Sinai depois dos acordos com o Egipto na sequência da Guerra de Yom Kippur. Sucessivos governos, rabinos e aventureiros fundamentalistas tinham garantido que aquele território de areia, terra poeirenta, à beira do mar, fazia parte do Grande Israel. Por isso, assentaram as suas casas, explorações agrícolas, estufas de flores e frutas, pequenas indústrias, escolas, sinagogas, bibliotecas, "yeshivas" e piscinas. Eles sabiam o risco que corriam. Suportaram, portanto, os morteiros e os rockets al-Qassam. Também não ignoravam que os seus territórios eram de grande interesse estratégico para Israel, uma vez que impunham uma linha de separação entre Gaza e o Egipto (em Rafiah e Termit). E tinham uma missão religiosa fazer parte do Israel bíblico anunciado no final da década de 60 por líderes extremistas (como o rabino Kook), a maior parte deles chegados dos EUA, e para quem uma teocracia fazia mais sentido do que um estado democrático. Eu não entendia o absurdo de viver debaixo do fogo contínuo do Hamas e do Hizzbullah, mas compreendia a paixão e o heroísmo.

A sociedade israelita, no entanto, tem outra grande paixão a democracia. Vivendo por décadas sitiados por estados ditatoriais e militaristas que albergavam todo o género de criminosos, de terrorismo e de anti-semitismo, e que dariam tudo pela destruição do estado de Israel (a paixão de Arafat, aliás - e do "mufti" de Jerusalém, que chegou a pedir aos nazis que os ajudassem a trazer a "solução final" para a região), os israelitas nunca abdicaram de ser a única democracia naquele lugar do Mundo. Mantiveram o ideal democrático nas piores circunstâncias: durante as agressões sucessivas dos estados árabes e as duas guerras maiores que atravessaram depois da independência, durante as vagas de atentados, mesmo durante o isolamento internacional decretado com a cumplicidade de "estados aliados" europeus e da opinião pública ignorante e imbecil, treinada para considerar o sionismo como uma ameaça. A retirada de Gaza, que representa um cenário de dor para cerca de dez mil colonos que deixam para trás as suas casas, os seus cemitérios e décadas de vida, é um custo assumido unilateralmente por Israel. Provoca, certamente, divisões profundas na sociedade e o ressentimento de uma "vasta minoria" de cidadãos - mas é um acto de profundo heroísmo e de grande dignidade. E, naturalmente, é uma decisão estratégica tomada diante da desagregação demográfica do país, além de constituir, também, uma "reparação", termo que deve usar-se no sentido mais profundo do que isso significa para a cultura e a ética judaicas.

E significa um sinal e uma porta aberta. O sinal de que talvez seja possível avançar para a criação de um estado palestiniano democrático. A porta aberta para outras etapas de negociação.

As imagens que nos chegam de Gaza transportam, por isso, uma ventania e um silêncio. A ventania que obriga a respirar no meio da dor. O silêncio incomodado dos que nunca esperavam que Ariel Sharon pudesse ser o intérprete de um papel histórico tão decisivo.

Jornal de Notícias - 18 de Agosto de 2005