agosto 11, 2005

Indiferenças

O pais volta-se para dentro. Não há outra maneira de dizer: voltar-se para dentro, para onde as coisas ardem, onde as casas são consumidas pelo fogo, onde as florestas se despedem. Foi o mesmo há dois anos, quando a tragédia se revestiu de mais coisas além de imagens: teve números, consequências e escândalo, Foi o mesmo no ano passado: números. Foi o mesmo este ano, O espectáculo do Verão é dramático e passa nas televisões. Vejo Boticas, Vila Pouca de Aguiar e Manteigas a arder, Ao longe, sentado diante de uma televisão, na cidade, o país parece outro país, consumido pelas chamas, devorado pelas corridas de bombeiros e pelo queixume dos que são atingidos.

Os pinhais da minha infância morreram há muito, na estrada de Vidago para Boticas e no que restava do Alvão. Mostrei aos meus filhos arvores centenárias que já arderam, no meio de montanhas que se cobriram de negro. Quando atravesso o meu pais, de comboio, ou de carro, vejo esse rasto de cinzas e comovo-me. Uma pessoa comove-se facilmente quando atravessa as serras destruídas pelo fogo. Há repórteres de televisão que se comovem todos os anos – aqueles que não acham que todos os espectáculos sao iguais e que a dor merece um retrato mas não aceita banalidades.

Parece que são as condições meteorológicas, eu sei. E que os níveis de poluição atmosférica são dramáticos (Lisboa coberta por uma nuvem de fumo, cheirando a arvores queimadas). Mas sinto que é necessário fazer, definitivamente, alguma coisa. Não se trata de repensar o debate que ocorreu há dois anos, nem as queixas moderadas que resultaram do ano passado, Depois do Verão vem o Inverno, os debates desapareceram e alguma agua há-de cair, juntamente com o silêncio. Para que tudo recomece no Verão. É isso que é precise evitar: a repetição do drama, o regresso da tragédia.
Portugal regista os níveis de incêndios mais altos do sul da Europa; proporcionalmente, Portugal arde mais do que a Amazónia. Daqui a uns anos, por este ritmo, não resta nada para arder. De uma vez por todas, é necessário fazer algu­ma coisa, sob o risco de ficarmos indiferentes ao nosso próprio desaparecimento.

2. Os Portugueses, sabe-se pelas sondagens, acham que o resto do ano de 2005 vai ser pior e que 2006, enfim, vai pelo mesmo caminho, mas, mesmo assim, muitos deles pensam que vai haver coisas melhores. Há aqui uma aparente contradição, mas eu penso que o raciocínio está essencialmente correcto. Este cenário, que representa um perigo fantástico, diz-nos apenas que estamos a ficar mais indiferentes.

3. Uma pequena historia: nas televisões passaram imagens do sítio da NASA na internet, a propósito do regresso do vaivém espacial (vem lá tudo: o que comem os astronautas, quanto custa a viagem, quem patrocina, qual o
itinerário de desastres que ocorreram antes, etc). Um jornalista, ao apresenta-las, não consegue evi­tar a piadinha do costume; "É as­sim que os americanos vendem o seu peixe." É precise dizer que o jornalista vive num pais onde se diz que existem vários estudos sobre o provável futuro aeroporto da Ota - mas nenhum deles esta acessível aos cidadãos. Como não conhecemos os relatórios finais sobre os acidentes na construção do metro de Lisboa ou sobre o prolongamento da actual rede. Também não temos números exactos sobre o défice do metro do Porto. Para que os cidadãos tivessem acesso ao ranking das universidades e escolas públicas, foi preciso muita insistência. Vivemos no país do segredo, na verdade. Mas os americanos, esses, sabem é "vender o seu peixe". Chama-se a isso transparência; nós, em Portu­gal, vamos ficando indiferentes.

Jornal de Notícias - 11 de Agosto de 2005