Viajar, depois da viagem
Num romance de Alberto Moravia há uma personagem que ganha a vida como escritor de viagens. Um dia, recebe a incumbência de escrever sobre o Nilo, o Egipto, enfim. E iria de cruzeiro, navegando sobre as águas azuis do Mediterrâneo, deitado numa cadeira do convés, observando como as turistas da classe média italiana se bronzeavam e as famílias se aplicavam no buffet. A proposta era tentadora. Por vários motivos - mais romanescos e pessoais - a altura não era a melhor na sua vida. De modo que, ao sair de casa, pediu ao táxi para, antes de se dirigir ao porto e ao paquete branco e luminoso que deveria levá-lo de viagem, passar pela estação de correios, onde depositou, devidamente selado, um envelope dirigido à revista onde trabalhava. Dentro desse envelope ia, dactilografada e sem rasuras, a reportagem que fora encarregado de escrever. Só depois embarcou, aproveitando para dormir durante a viagem. Os leitores teriam acreditado nele e na sua reportagem?
Claro que isso não acontece na Volta ao Mundo. Aqui, as pessoas gostam de viajar e de escrever sobre o que Ihes acontece. Eu conheço-os. E conheço-me. É esse, aliás, o segredo de qualquer reportagem: ir, ver e contar. Se possível, cativar os leitores. Mas, confesso, isso não é o objectivo: a própria viagem selecciona os leitores e os aventureiros que partem para a Birmânia ou para o Brasil, para os Picos da Europa ou para a Tasmânia. E há as imagens, claro: sem as imagens, poderíamos dizer, os lugares não existiam; elas são a prova de um relato de viagem. A personagem de Alberto Moravia não se preocupava com isso; na altura, bastavam umas imagens de arquivo, fotografias de um Mediterrâneo azul e brilhante, de paisagens tépidas e agradáveis, monumentos e cidades históricas.
Muitas vezes, depois de uma viagem, revejo fotografias. Elas levam-me ao passado recente, a uma respiração que senti noutro lugar do mapa, a uma rua onde vivi no meio de outra língua, a um restaurante onde experimentei surpresas ou confirmações. Mas a verdade é que não colecciono fotografias de viagem; nem das minhas. O que me traz problemas de vez em quando, sobretudo porque um dos meus filhos é um céptico às vezes obstinado. Por exemplo, um dia contei-lhe que tinha estado na Costa do Marfim e que tinha atravessado as florestas do interior ate chegar a Abidjan, no meio de tempestades tropicais (e, já agora, de uma gripe desagradável). Ele olhou-me, considerou a viagem, achou-a interessante e esticou o dedo: «Isso está muito bem. E as fotografias?» Não tenho. «Não tens?» Não. «Então não houve viagem, praticamente.» Achei que estava diante de uma das vertigens dos tempos modernos. Em linguagem vulgar.
Se não colecciono fotografias, colecciono literatura de viagens e interrogo-me sobre a vida desses escritores antigos, dos séculos de ouro da viagem, quando de Lisboa ao Porto se demoravam dias e se murmurava tanto sobre a existência de monstros que engoliam os viajantes como de amazonas formosas e devoradoras que seduziam os marinheiros e os impediam de voltar à Europa. Fernão Mendes Pinto, Vespúcio, Colombo, Vaz de Caminha, Diogo do Couto, Castanheda, os cronistas do renascimento fascinados por Marco Polo e pela descoberta da Abissínia como das novidades que vinham da China como da América: teriam eles contado a verdade? Podemos fiar-nos nas suas descrições? Eram mesmo formosas as índias brasileiras de Caminha, que tanto teriam fascinado os nossos marinheiros a ponto de alguns deles terem fugido da armada de Cabral e ficado lá como nossos primeiros foragidos? Existiam mesmo as paisagens de Pinzón, naquilo que hoje sabemos ser o Ceará e Jericoacoara? Que imagem temos da entrada de Orellana e dos outros marinheiros espanhóis, cruéis e cobiçosos, que penetraram no Amazonas pensando que estavam no Ganges e que tinham chegado ao Cathay?
As viagens são, de facto, momentos gloriosos de uma existência destinada à imaginação e ao delírio. Se hoje não houvesse imagens, preguiçosos como somos, ninguém acreditava que se podia ser feliz só por poisar o dedo noutro lugar desconhecido do mapa. Como podemos convencer alguém da verdade intensa de um sabor e da doçura de uma paisagem ? É esse o segredo do bom viajante: contando historias. Uma coisa ao alcance de cada um. Mas hoje há fotografia digital, não é?
in Outro hemisfério - Revista Volta ao Mundo, Setembro 2005
Claro que isso não acontece na Volta ao Mundo. Aqui, as pessoas gostam de viajar e de escrever sobre o que Ihes acontece. Eu conheço-os. E conheço-me. É esse, aliás, o segredo de qualquer reportagem: ir, ver e contar. Se possível, cativar os leitores. Mas, confesso, isso não é o objectivo: a própria viagem selecciona os leitores e os aventureiros que partem para a Birmânia ou para o Brasil, para os Picos da Europa ou para a Tasmânia. E há as imagens, claro: sem as imagens, poderíamos dizer, os lugares não existiam; elas são a prova de um relato de viagem. A personagem de Alberto Moravia não se preocupava com isso; na altura, bastavam umas imagens de arquivo, fotografias de um Mediterrâneo azul e brilhante, de paisagens tépidas e agradáveis, monumentos e cidades históricas.
Muitas vezes, depois de uma viagem, revejo fotografias. Elas levam-me ao passado recente, a uma respiração que senti noutro lugar do mapa, a uma rua onde vivi no meio de outra língua, a um restaurante onde experimentei surpresas ou confirmações. Mas a verdade é que não colecciono fotografias de viagem; nem das minhas. O que me traz problemas de vez em quando, sobretudo porque um dos meus filhos é um céptico às vezes obstinado. Por exemplo, um dia contei-lhe que tinha estado na Costa do Marfim e que tinha atravessado as florestas do interior ate chegar a Abidjan, no meio de tempestades tropicais (e, já agora, de uma gripe desagradável). Ele olhou-me, considerou a viagem, achou-a interessante e esticou o dedo: «Isso está muito bem. E as fotografias?» Não tenho. «Não tens?» Não. «Então não houve viagem, praticamente.» Achei que estava diante de uma das vertigens dos tempos modernos. Em linguagem vulgar.
Se não colecciono fotografias, colecciono literatura de viagens e interrogo-me sobre a vida desses escritores antigos, dos séculos de ouro da viagem, quando de Lisboa ao Porto se demoravam dias e se murmurava tanto sobre a existência de monstros que engoliam os viajantes como de amazonas formosas e devoradoras que seduziam os marinheiros e os impediam de voltar à Europa. Fernão Mendes Pinto, Vespúcio, Colombo, Vaz de Caminha, Diogo do Couto, Castanheda, os cronistas do renascimento fascinados por Marco Polo e pela descoberta da Abissínia como das novidades que vinham da China como da América: teriam eles contado a verdade? Podemos fiar-nos nas suas descrições? Eram mesmo formosas as índias brasileiras de Caminha, que tanto teriam fascinado os nossos marinheiros a ponto de alguns deles terem fugido da armada de Cabral e ficado lá como nossos primeiros foragidos? Existiam mesmo as paisagens de Pinzón, naquilo que hoje sabemos ser o Ceará e Jericoacoara? Que imagem temos da entrada de Orellana e dos outros marinheiros espanhóis, cruéis e cobiçosos, que penetraram no Amazonas pensando que estavam no Ganges e que tinham chegado ao Cathay?
As viagens são, de facto, momentos gloriosos de uma existência destinada à imaginação e ao delírio. Se hoje não houvesse imagens, preguiçosos como somos, ninguém acreditava que se podia ser feliz só por poisar o dedo noutro lugar desconhecido do mapa. Como podemos convencer alguém da verdade intensa de um sabor e da doçura de uma paisagem ? É esse o segredo do bom viajante: contando historias. Uma coisa ao alcance de cada um. Mas hoje há fotografia digital, não é?
in Outro hemisfério - Revista Volta ao Mundo, Setembro 2005
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