fevereiro 25, 2006

Sobre o Douro, verdadeiramente

A vista é deslumbrante, o ambiente é simpático e a decoração exigente. A carta do Sessenta Setenta pode revelar surpresas muito agradáveis.

E é aqui que eu digo: "Nunca digas nunca." No meio do nevoeiro do Douro, aquele que desce sobre as águas e deixa a sua margem direita meio escondida entre colinas, a medida que se aproxima da Foz, eu gosto profundamente de Massarelos. Do Cais das Pedras, por exemplo - sempre que passo naquele lugar sei que não posso esquece-lo. Depois, subindo pela Rua da Restauração, há uma ruela que vai dar ao Sessenta Setenta e o nome é o mais indicado para o lugar: Rua Sobre o Douro. Nunca digas nunca, portanto: onde se esperava uma decoração "a propósito", ribeirinha e cheia de acessórios etnográficos, barcos rabelos, romantismos de ocasião, aí estava uma coisa exigente, sóbria, delicada. Não, não digo "suave": as paredes são escuras, o tom vai do cinza ao negro. À noite, a luz (embora com uns holofotes despropositados, logo à entrada) prepara-nos para essa entrada quase triunfal num dos restaurantes mais discutidos da cidade. E vale a pena a discussão? Vale.

Há na ementa do Sessenta Setenta coisas que apetecem ao primeiro olhar: uma sapateira com pêra abacate, presunto com figos, rúcula com 'roquefort' (variante da chicória com parmesão), escabeche de mexilhões (muito bom e com mexilhões frescos), o 'ceviche' (de ressonâncias mexicanas ou da área) ou o 'patattu', que comi na sua versão abrilhantada por queijo derretido, além da minha entrada preferida - 'foie gras' salteado com uvas, uma experiência que recomendo para além da minha própria gula ou até luxúria: aquele que me coube em sorte era suculento, minado pelo agridoce das uvas, poisando sobre um molho suave, quase perfumado. Muito bom.

O passageiro do Sessenta Setenta passa então para as carnes, área em que, além dos bifes (com pimenta, do acém ou alemão), figura um 'carré' de borrego que vi passar à minha frente, dourado, moreno, arrastando uma serie de aromas triunfais, muito próprio para se devorar, o que me deixou impróprio para saborear quer a mão de vitela (ficará para outra vez, enquanto sonho com as suas gelatinas perigosas) quer o pombo com chila - mas imagine a devassidão que estas sugestões transportam - permitindo-me recordar um folhado de 'foie gras' muito exigente e atrevido, cheio de colesterol, do bom, naturalmente. Depois, invertendo a ordem, passamos aos peixes: rodovalho com espargos, bife de atum, Mas com funcho e os bacalhaus. A lula, uma solitária lula (de dimensão razoável, mas uma lula, caramba!) adormecera embalada pelo funcho: boa, saborosa, mas solitária, repito. Não sei se a lula merecia tanta solidão ou se eu não merecia mais do que uma. Fico na dúvida, tanto mais que o sabor era muito apreciável. E os bacalhaus: dourado e a Freixieiro. O dourado, envolvido em polme e repousando sobre uma batata no forno, permitiu ver qual a intenção; mas a batata, com um destino que previa que se tornasse cremosa, estava ligeiramente mal cozida, se me entendem. Felizmente que o bacalhau, um lombo perfeito, não tinha sido expurgado das suas gelatinas e do seu estatuto de peixe salgado, conservando ambas as coisas. Não é um bacalhau, digamos, conforme a tradição, mas não o vi queixar-se. Já quanto ao "à Freixieiro", envolvido em broa, perfumado de azeite excelente (um pormenor a ter em conta, sempre), nada a dizer senão elogiá-lo.
Comi depois um 'brick' de maçã, regular na sua massinha tostada, e a tarte fina de maçã, com aquela boa poeira de canela; a 'marquise' de chocolate era, de facto, uma boa mousse perfeita; o 'souffle grand marnier', muito gabado, foi petiscado em prato amigo e deixou saudades, ao lado de promessas como a tapioca de maracujá, a pêra 'glacée' ou o leite-creme e o mil-folhas.

Quer o leitor conclusões, naturalmente. Com clareza: achei uma cozinha de boa qualidade, com algumas surpresas agradáveis (insisto que prove o 'foie gras' com uvas). Já se sabe que eu não gosto de superlativos finais a não ser quando o meu estômago pede repouso; depois do Sessenta Setenta não precisei muito de repousar - aquela vista era agradável, a sala pareceu-me muito bonita, o cardápio não exigiu esforço de compreensão ou de digestão. Há dias assim. Nunca digas nunca.

À lupa
Vinhos: * * *
Digestivos: * *
Acesso: * * *
Decoração: * * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * * *

Garrafeira
Tintos: 48
Brancos: 19
Verdes Rosés: 5
Espumantes & Champanhes: 3
Aguardentes Portuguesas: 4
Portos e Madeiras: 3
Uísques: 11
Cervejas: 5

Outros dados
Charutos: não
Estacionamento: relativamente fácil
Levar crianças: não
Bengaleiro: sim
Reserva: muito aconselhável
Preço médio: 30 Euros

SESSENTA SETENTA
Rua sobre o Douro. 1 - A 4050-592 Porto
Tel: 22.3406093
Encerra aos domingos

in Revista Notícias Sábado - 25 Fevereiro 2006

fevereiro 23, 2006

Licenciosidade

O leitor a esta hora já se esqueceu que a Polícia (e creio que uns magistrados) invadiu a redacção de um jornal, o "24 Horas", apreendeu material e obedeceu a ordens, certamente munida dos documentos e instruções necessárias. Mas não esqueça.

Não venho defender a honra perdida dos jornalistas ou da Imprensa. Não se trata de defender a corporação jornalística nem de atacar a Polícia. A Polícia fez o que lhe estava cometido, penso eu. Em meu entender, o jornal fez também o que lhe cabia fazer informar os seus leitores, publicar notícias. Mas, porque se trata do "24 Horas", é natural que não se reúnam à volta do jornal as solidariedades e as indignações habituais. Por isso, eu peço-lhe que não esqueça. E não lho peço em nome de qualquer direito de excepção garantido pela Imprensa ou pelo direito de os jornais publicarem cartoons sobre o profeta Maomé. Aqui, o caso é outro e chama-se "segredo de Justiça", que é, como toda ou quase toda a gente sabe, um dos segredos mais mal guardados entre nós. Não que não mereça ser guardado - mas porque, nos corredores por onde passa, há sempre portas e janelas por onde se escapa um pouco dele. Magistrados, advogados, juízes, investigadores policiais ou não, e outros eventuais manuseadores de processos em "segredo de Justiça", todos são suspeitos de desrespeitar o princípio segundo o qual um segredo existe, precisamente, para ser guardado.

Não lhe causa impressão, a si, leitor, que toda a comunidade ligada à Justiça, ao jornalismo e à política, trate do "problema do segredo de Justiça" há tantos anos e até agora não se tenha chegado a uma solução? Na verdade, o "segredo de Justiça" é revelado aqui um pouco, ali outro tanto, mais além quando for conveniente. O que sugere, claramente, que convém existir "segredo de Justiça" para que distintos operadores possam violá-lo de acordo com necessidades, conveniências ou azares. É difícil, além de aborrecido, constatar que essa suspeita permanente paira sobre as diversas corporações envolvidas nos tribunais e nas investigações judiciais. Mas é que, além de pairar a suspeita, existe mesmo essa evidência.

Como se sabe, o "24 Horas" divulgou informações sobre o chamado "envelope 9". Ou seja deu a conhecer a sua existência; e a existência do "envelope 9" envolvia entidades, figuras, autoridades, nomes e influências - além de uma enorme trapalhada processual que nos permite duvidar, mais uma vez, do próprio processo da Casa Pia e do mecanismo das escutas telefónicas. A Procuradoria-Geral da República prometeu investigar, tanto mais que o presidente da República e o primeiro-ministro insistiram em obter explicações. Até agora, que se saiba, depois de uma ida do procurador ao Parlamento (onde se portou muito bem) - e já passa mais de um mês - a ida ao "24 Horas" e subsequente apreensão de material, é a única prova de que parece haver investigações. Claro que seria possível proceder com mais serenidade e discrição, mas um assalto a um jornal (e ainda por cima ao "24 Horas", o nosso pequeno tablóide) teria efeitos mediáticos evidentes. E o leitor pensaria: eles estão, afinal, a trabalhar; eles estão, afinal, a tirar isto a limpo.

Repare que, nesta altura, já não estamos a questionar o "segredo de Justiça". Estamos a averiguar quem violou o "segredo de Justiça" e essa responsabilidade não é apenas de quem divulgou peças do processo. Daqui a um mês, o leitor quer saber quem passou peças do processo para a Imprensa e tem todo o direito a querer fazer essa pergunta. Que magistrados, que investigadores, que advogados o fizeram? É evidente que é mais fácil punir a "licenciosidade da Imprensa" e não responder a nada disso. Eu defendo a "licenciosidade da Imprensa", mas quero saber quem a fomenta.

Jornal de Notícias - 23 Fevereiro 2006

fevereiro 18, 2006

Suave e tentador

O Foz Velha é um restaurante discreto e moderno. Moderno na apresentação da carta e em algumas sugestões; discreto na localização, diante do cenário quase perfeito da Foz portuense, com os seus perfumes de final de Inverno.

A literatura entrou nas cozinhas, e se em muitos casos a coligação apresenta resultados francamente deliciosos e precisos, há outros em que estamos diante de um embuste. Podemos sucumbir diante de uma escolha em que o nome da sugestão do chefe ultrapassa, em palavras, o tamanho do próprio prato. Sabem o que são (passo a citar:) "tournedós de atum com finos aros de lula, sementes de papoula e 'confit' de tomate seco com redução de xerez, servidos com tempera de vegetais, aipim e arroz de sementes"? Como experiência literária é fantástico; como experiência gastronómica é duvidoso, mas depende muito da companhia e da meteorologia geral.

Foi diante destes avisos que estacionei o carro frente a um dos mais belos cenários do meu Porto pessoal: a Foz. Às vezes gosto perdidamente da Foz - dos seus perfumes, dos seus bares, dos seus restaurantes e das suas manhãs que lembram Penzance, Brighton e vagamente a Foz ela própria. O Foz Velha (era esse o meu propósito) tinha-me sido apresentado como um restaurante superlativo e eu desconfio de coisas superlativas. Ao jantar, a decoração pareceu-me bonita, com as suas paredes azuis, suaves, uma luz ténue de refeição familiar, além de um ruído de fundo que mistura musica vagamente acolhedora com aquele murmúrio de conversas agradáveis à sexta-feira a noite. Entrei já na segunda rodada de jantares, tinha marcado mesa para bastante tarde. Cheguei à hora marcada; a mesa estava preparada sem me parecer uma surpresa. Gosto disso.

Depois de circular o cesto dos pãezinhos (quentes, saídos do forno) e de meter a colher numa mousse com ovo de cordorna e gelatina de ananás, vieram as entradas escolhidas: uma terrina de 'foie-gras' fresco com figo confitado e redução de vinagre balsâmico, muito aceitável; um folhado de cogumelos muito suculento, saboroso, de massa apetitosa, com salada de maçã e pedacinhos de lombinho de javali "curado ao molho de redução de vinho do Porto"; as "rosetas de salmão curado e aromatizado com especiarias ao molho de chalotas e alcaparras, com pequena quiche de alho trances e cebolinho"; e ainda um "queijo 'chevre' gratinado em cama de tosta de azeite e 'palha' de alho-porro" com folhas secas de manjericão. A terrina de 'foie-gras' era na verdade fresca; os cogumelos estavam muito bons, o javali menos; o salmão pareceu-me suave de mais, sem aquele sabor forte que as vezes nos apetece; quanto ao 'chevre', a ligação ao azeite era perfeita, lamento e que me perdoem os puristas. Nisto, a garrafa de um belo vinho do Douro pedia mais. De entre as sugestões, saltavam à vista um peito de pombo laminado com molho de pimentas; lombinhos de porco preto com puré de castanhas, arroz selvagem e molho de três pimentas; um lombo de bacalhau com tomate e salpicão transmontano em pão de azeitonas com milhos fritos recheados de queijo da serra; um bacalhau "braseado em lascas" com batatas a murro, pimentos e grelos. Mas apetites são apetites. Vieram, antes, tranches de robalo selvagem com batata salteada, tudo muito saudável, se me entendem; o naco de novilho com legumes salteados e batatas a murro estava saboroso, com a textura interior protegida, e embora a variedade de legumes fosse pequena, não se perderam no caminho; veio também uma coxa de pato confitada com salteado de couve dos pobres e feijão branco (a couve com aplicações quase doces, muito boa, o feijão infelizmente solto de mais); o lombinho de cordeiro em massa folhada com tomilho, cogumelos selvagens e molho de 'foie-gras' foi quase o melhor da noite - molho, muito bom; massa folhada rescendendo a sua manteiga; infelizmente, o cordeiro, alem do tomi­lho, tinha sal que podia ser poupado para deixar viver o sabor do animal, que pena! Recostado, provei ainda o pao-de-ló sobre creme de abóbora "espuma de requeijão e amêndoa tostada" e um nadinha de tarte de maçã com bolachas de canela. O pao-de-ló estava muito bom e o sabor do requeijão completamente aprovado. Quase dormitei depois de chegar o café e antes de pedir um 'whiskey' irlandês reconfortante para iluminar um 'doble corona' de 'San Cristobal de La Habana'. Achei o Foz Velha muito agradável, muito tranquilo, com um serviço esplêndido.

À Lupa
Vinhos: * *
Digestivos: * *
Acesso: * * *
Decoração: * * * *
Serviço: * * * *
Acolhimento: * * * *
Mesa: * * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * * *

Garrafeira
Tintos: 36
Brancos: 17
Verdes e Alvarinhos: 5
Espumantes e Champanhes: 6
Aguardentes portuguesas: 12
Portos e Madeiras: 6
Uísques: 20
Cervejas: 4

Outros dados
Charutos: Sim
Estacionamento: Fácil
Levar crianças: Não
Bengaleiro: SIM
Reserva: Muito aconselhável
Preço médio: 35 Euros

Foz Velha
Esplanada do Castelo, 141
Foz do Douro 4150-196 Porto
Tel: 226 154 178 / 913471 432
Encerra às Terças-feiras

in Revista Notícias Sábado - 18 Fevereiro 2006

fevereiro 16, 2006

Pedir desculpa

O senhor ministro dos Estrangeiros não tem culpa e os seus interessantes argumentos seriam desmentidos sem necessidade de recorrer a grande bibliografia. Mas há neles um pormenor que nos devia deixar perplexos a tentação de fazer doutrina sobre o "choque de civilizações" pedindo desculpa por anos e anos de ignomínia. Esta escola de ressentimento cultural, ideologicamente pobre e desgraçadinha, não lembra apenas o tom "apaziguador" de Chamberlain: é, na verdade, uma mistificação perigosa, misturando no mesmo caldeirão as Cruzadas, a criação do estado de Israel, o "choque de civilizações", o riso de Voltaire, a invasão do Iraque, o empobrecimento do Médio Oriente, a Inquisição e o futebol euro-árabe. Isto é um truque pobre. No caso das repetidas declarações do senhor Ministro dos Estrangeiros, além de um truque pobre é uma ameaça de ventríloquo.

Não haveria polémica se o senhor Ministro dos Estrangeiros se mantivesse no seu lugar, tratando da diplomacia. Mas há aqui uma questão doutrinal, e o Estado português não devia, através de um ministro, tomar posições definitivas sobre a matéria, designando o Ocidente como o Grande Satã e dispondo-se, portanto, a um debate de que sairá razoavelmente chamuscado.

Eu não sei bem quem são os meus antepassados e quantos crimes eles cometeram desde 1143, à espadeirada, varrendo inimigos e adversários, navegando para lá dos mares ou, como em Camões, arrancando cabeças com eficácia e em nome da "santa fé". Mas não carrego essa culpa sobre os meus ombros. Tivemos monstros razoáveis, sim. Na verdade, temos no armário, guardados, alguns esqueletos infames e é natural que, de vez em quando, não nos orgulhemos deles. De Afonso Henriques (cortando cabeças no campo de batalha) ao apoio dado a Francisco Xavier na Índia (que, pela fogueira, assassinou bastante), passando pela rapaziada das naus (leiam Camões, tão "politicamente incorrecto") e chegando à guerra colonial, o rasto não é simpático. Já fizemos o balanço. O cidadão Freitas do Amaral ainda não, mas há muita gente que já fez esse balanço antes de ele ter descoberto a luz da nova fé e o ressentimento pós-colonial. O cidadão Freitas do Amaral descobriu recentemente que o Ocidente foi muito sacana e que o resto do mundo está cheio de vítimas da sua malvadez. Chegou atrasado, mais uma vez.

O seu ressentimento é, no entanto, muito selectivo. Em breve - oh, bastar-lhe-á ler um pouco de Dante e o suficiente de Camões - proporá uma revisão da nossa história cultural com base no nosso complexo de culpa; e com base no nosso complexo de culpa e na evocação das numerosas vítimas do passado (além das suas obsessões mais recentes) vai castigar-nos a todos, exigindo silêncio e a procissão de arrependidos, de dedo levantado e com aquele aparente bom-senso transformado em arma diplomática. Tudo isto é muito estranho (ou não), sobretudo depois de o dr. Vitalino Canas, muito irascível, ter aparecido em cena para proceder a exercícios de equivalência moral entre "cartoonistas" e multidões incendiárias.

O prof. Freitas do Amaral acha que devemos pedir desculpa por algumas passagens de Camões, pelo riso de Dante, pelo sarcasmo de Shakespeare, pelos erros de Afonso de Albuquerque, pela viagem de Vasco da Gama, pelos fuzis de Mouzinho, pelo nosso vergonhoso passado. E, com isso, devemos também justificar os incêndios nas embaixadas e as "fatwa" contra escritores, desenhadores e outros cidadãos, inclusive oriundos de países de cultura islâmica dominante. Ele acha que o ressentimento é uma coisa razoável e justa. Ele acha que devemos manter-nos em silêncio.

Jornal de Notícias - 16 Fevereiro 2006

fevereiro 11, 2006

À minha maneira

É um clássico da Linha de Cascais. No Inverno, jantares acolhedores. No Verão, tranquilo e dedicado ao mar. Tem uma lareira fantástica.

Onde se vai jantar quando se está "a meio da marginal" e a disposição é a de uma comida clássica, sem grandes aventuras, num restaurante com serviço mais do que correcto? Felizmente, já há muitos lugares que obedecem a esse quadro, "a meio da marginal", sem necessidade de chegar a Cascais e de nos metermos pelo Guincho (onde iremos um destes dias). Um desses lugares é O Toscano. Mais vale dizê-lo logo para evitar que o leitor consulte o guia.
Há, na verdade, uma serie de restaurantes cujo brilho & glória assenta nessa característica que, por vezes, me é muito simpática: não acrescenta grandes novidades à história da gastronomia, não fervilha de novidades nem de "gente conhecida", não nos distrai deliberadamente com propostas gentis do novo dicionário da cozinha internacional (fatias de cherne com perfume de figo, tomate confitado e uma poeira de gengibre), apresenta peixe onde quer mostrar peixe, chama grelos salteados a um bom molho de grelos salteados, o bife geralmente é só bife, as sobremesas estão carregadas de sugestões pecaminosas com nomes vulgares (papos-de-anjo, trouxas-de-ovos, arroz-doce ou farófias) e o serviço combina maravilhosamente o estilo dos antigos criados de mesa com a familiaridade que se manifesta mais em gestos simpáticos do que em ademanes que não temos coragem de explicar ao resto da família. Nisto, convém relembrar os velhos restaurantes que souberam acompanhar a evolução dos gostos médios sem grande dificuldade em sobreviver e manter acesa a chama dos seus fogões. Ora, a relação que se mantém com O Toscano ao final da segunda visita é já a de familiaridade, justamente. Aqueles senhores circulam de mesa em mesa, atentos, ajeitam um copo, renovam os níveis de agua e de vinho, trocam de cinzeiro, sugerem um nadinha de arroz para terminar as gambas panadas, piscam o olho com o atrevimento de quem sabe que uma aguardente "daquelas" vem a propósito, propõem o segundo cafezinho se a conversa esta demorada. Enfim, é um restaurante à antiga. Isso agrada-me também. A comida agrada-me, mas esses pormenores (a rosa oferecida às senhoras, à saída, já foi mais comovente do que hoje, mas é sempre uma coisa que aparece depois no 'tablier' do carro) são mais do que um agrado num meio em que há muita desatenção. Mas que o leitor não julgue que eu vou a um res­taurante apenas para ser bem tratado, não.

A ementa do Toscano tem aquela modernidade dos anos setenta (a casa abriu em 1972) onde espargos brancos ainda são sinónimo de grandeza e umas gambas fritas com alho merecem que se contemple o seu molho com níveis ancestrais de colesterol e devassidão. Este tom prolonga-se ate à carta dos peixes que apresenta o toque ligeiramente exótico (há trinta anos, certamente) de um caril de gambas à moda de Java, mas que nos salva de seguida com peixes frescos e bem grelhados (robalo, dourada, garoupa, salmonete, linguado), além daquilo que são já ex-libris da sua ementa: os filetes de pescada com arroz de marisco; as gambas panadas, de crosta decidida, também com arroz de marisco (onde há lombinhos generosos), e aquelas ovas de pescada deliciosas (fritas ou cozidas), tenras, em que o garfo pousa para quebrar o feitiço da sua pele imaculada. Já não há ovas assim. O peixe que vai ao forno em pão também é recomendável.

Nas carnes, segue-se o mesmo estilo, com modéstia de imaginação: as 'noisettes' de lombo de novilho no espeto, as carnes grelhadas (manta de porco Pata Negra, espetadas, lombo de javali) acompanham, no estilo, seduções clássicas como o tournedó ou os medalhões com cogumelos, o arroz de pato, a lebre ou coelho com arroz malandrinho ou sugestões de época (nos peixes, a lampreia, que é boa; nas carnes, o veado, que não prove!, o cabrito que aparece a espaços e umas costeletas de borrego suculentas). Quando vem o carrinho de sobremesas já estamos de estômago disciplinado e convertido: olhamos para ele com ternura e compreensão: pudim excelente, farófias muito boas, sericaia apetitosa. Os adjectivos são assim: simples, directos e clássicos, como O Toscano.


À lupa
Vinhos: * * *
Digestivos: * *
Acesso: * * *
Decoração: * *
Serviço: * * * *
Acolhimento: * * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado * * * *

Garrafeira
Tintos: 168
Brancos: 52
Verdes e Alvarinhos: 9
Espumantes e Champagnes: 12
Aguardentes Portuguesas: 14
Portos e Madeiras: 16
Uísques: 34
Cervejas: 8

Outros dados
Charutos: SIM
Estacionamento: Parque privativo
Levar crianças: Sim
Bengaleiro: Sim
Reserva: Muito aconselhável
Preço médio: 30 Euros

O TOSCANO
Praça Barbosa de Magalhães, 2
2775-162 Parede
Tel: 214 582 020 - 214 572894
Encerra à 2.ª feira

in Revista Notícias Sábado - 11 Fevereiro 2006

fevereiro 09, 2006

Ele ofende-nos

Vamos ser claros. A coisa é esta: estamos todos debaixo de fogo. Estamos, os que prezam a liberdade, o debate e o riso. Quem está a pôr-nos debaixo de fogo é uma multidão de crentes muçulmanos, articulados pelo fundamentalismo islâmico e pela interpretação forçada e abusiva de uns cartoons publicados num jornal dinamarquês. Por causa disso foram incendiadas embaixadas, rasgadas bandeiras, prometidos ataques a cidades europeias, ameaçados cidadãos da União, repetidas frases de apelo à violência em nome de Deus, investidas criminosas em nome da religião. Diante disso, que não é pouco, gerou-se o pânico do costume, além da tentativa de defender o indefensável só para não defender o inevitável. E o inevitável é só isto: ou somos gente livre, digna, cordata - ou nos submetemos ao medo. E o medo é a aposta do fundamentalismo, aliado à ameaça permanente da instabilidade e da irritabilidade dos altifalantes do Islão radical e do seu petróleo.

Diante desta chantagem e desta violência, que não são novas, que se percebem mas que não se podem admitir dentro de nossa casa, há sempre vozes que discordam e que acham que devemos ceder mais um pouco, que devemos ser ainda mais respeitadores e fechar os olhos às hordas que se manifestam nas mesquitas radicais de Londres ou de Damasco, e às ameaças de morte que pesam sobre os infiéis. Os infiéis somos nós. Eu sou infiel.

Diante dessa perspectiva animadora, o senhor ministro dos Negócios Estrangeiros apareceu a fazer doutrina. Toda a gente entende que, do ponto de vista diplomático, ou da "real politik", o senhor ministro dos Estrangeiros devia fazer uma declaração apaziguadora, à semelhança do que fizeram outros parceiros seus, certamente em atitude concertada na União. Mas o senhor ministro dos Estrangeiros quis mais ele queria fazer doutrina, e logo da mais dispensável e inadequada à sua figura. Daí resultou que o comunicado do Ministério dos Negócios Estrangeiros sobre a "crise dos cartoons" é, na verdade, um raspanete passado pelo Governo aos seus concidadãos, acusando-os de confundir "liberdade" com "licenciosidade" e, ao mesmo tempo, dizendo que "o que se passou recentemente em alguns países europeus é lamentável".

Se há coisa sobre a qual o Governo está dispensado de fazer, e em especial o senhor ministro dos Estrangeiros, são declarações sobre história das religiões e sobre problemas de moral. O senhor ministro dos Estrangeiros, no seu comunicado, podia ter sido mais lacónico, menos consentâneo com a tradição inquisitorial e igualmente sereno no modo como salva a face da diplomacia da União e dos "interesses portugueses". Mas não. Apeteceu-lhe espetar o dedinho e defender o direito de uns energúmenos se manifestarem a exigir a morte de uns desenhadores e o castigo dos europeus. Em nenhuma passagem manifestou preocupação com a segurança dos cidadãos (por exemplo, dinamarqueses, seus concidadãos europeus); em nenhuma passagem do seu triste comunicado o senhor ministro dos Estrangeiros tentou apaziguar as coisas; em nenhum momento manifestou solidariedade à Dinamarca pela agressão a que está a ser sujeita. Em vez disso, na verdade, Freitas do Amaral ofende-nos a todos quando diz que Portugal "lamenta e discorda da publicação de desenhos e/ou caricaturas" ou quando jura que o desrespeito pelos "símbolos fundamentais da religião que se professa" constitui uma violação da liberdade. Nenhuma dessas coisas é verdade. Podem sê-lo na cabeça do cidadão Diogo Freitas do Amaral. Mas não o são na cabeça de cidadãos livres, honrados e decentes que não se deixam amedrontar diante das ameaças e do cerco do fundamentalismo.

Não sei se o Governo pensa exactamente aquilo que Freitas do Amaral disse. Porque, se pensar, os cidadãos que se preparem. Ideias daquelas ofendem-nos a todos. E ameaçam-nos.

Jornal de Noticias - 9 Fevereiro 2006

fevereiro 04, 2006

Alentejo perto do mar

Bem no centro da Parede, e com delegação em Oeiras, o Zé Varunca exercita-se em cozinha alentejana. O resultado é francamente apetitoso. Está sempre à pinha.

Diz-se, na minha roda de amigos, que sou desconfiado em relação aos restaurantes alentejanos. É verdade, mas não por princípio. Sou desconfiado acerca dos restaurantes que servem «carne à alentejana» e salpicam de coentros tudo o que é superfície comestível. Generalizou-se esse «vício alentejano», dos vinhos aos petiscos, da mesa às alegorias de paisagem. Tudo o que é «alentejano» transformou-se em mainstream, em gosto médio, em padrão elementar. Quando um companheiro de mesa, por exemplo, chegados à altura de escolher o vinho, murmura qualquer coisa parecida com «um alentejano» (como se «um alentejano» fosse um selo comum a todos os vinhos que se podem beber), apetece-me logo exigir um chileno ou um australiano, e é só porque o meu estômago tem medo da acidez dos verdes. Outra das coisas irritantes que cavalga estrepitosamente nesse gosto médio nacional, em matéria de petiscos e coisas para morder, é a expressão «o Alentejo é que é». O resultado é eu eriçar-me. E posso eriçar-me à vontade porque vivi no Alentejo, peregrinei pelo Alentejo em busca das migas perfeitas, das labaças de primeira, dos espargos na sua época, do queijinho perfeito, do ensopado com sustância, das sopas fundamentais. Tenho um largo currículo de sofrimento e de enganos, bem como de surpresas e revelações. E, no entanto, existem na zona de Lisboa alguns (digamos, dois) restaurantes alentejanos de grande elevação e um insuperável (o Galito, em Carnide, para não deixar ilusões).

No final do ano passado, em busca de mesa para um jantar com amigos e filharada, procurámos o Zé Varunca na Parede. Cheio. Pelas costuras. Simpáticos, recomendaram o Zé Varunca de Santo Amaro de Oeiras, onde fomos com mesa reservada. Muito aconselhável, mesas largas, comida saborosa, serviço muito bom e acolhedor, mas não serviu para apreciação: não havia predisposição. Agora, rumámos ao Zé Varunca da Parede, a dois passos da estação dos comboios, a outros dois da velha pastelaria Ribeiro, de que tenho sempre saudades. A mesa repleta de entradinhas, estava à nossa espera: ovos de codorniz, orelha, enchidos, salada de polvo, torresmo, azeitonas, pimentos em azeite. Para apreciadores de refeições completas, um olho à ementa apresenta sopa de feijão com repolho, sopa de tomate ou de feijão com espinafres e, à quarta-feira, canja de pato; mas não só: as migas de batata com entrecosto, a galinha de cabidela, a carne do alguidar (servida regulamentarmente com batata cozida, temperada com pimentão, aceitando a norma), as burras assadas (à terça), rins com ovos, arroz de pato e feijão branco com tromba de porco (à quarta) chispe de porco preto de tomatada, pernil de porco preto no forno, o pato com lombardo, o borrego no forno (exigência das sextas-feiras, a par do cozido), constituem exemplos da roda que nos recebe durante a semana; ao sábado, para refeições prolongadas, há a sopa de cação, cozido à alentejana (com feijão verde, naturalmente), pezinhos de coentrada, migas de espargos bravos, coelho assado, galinha com tomate e a inevitável carne à alentejana salpicada de amêijoas, naturalmente.

Esta lista dispensa comentários: é a coluna vertebral do Zé Varunca e da tradição norte-alentejana, e sabe bem lê-la, linha a linha. Mas há mais: os pratos cozinhados por encomenda. Daí, recomendo as migas gatas (de bacalhau, claro, para os menos avisados), o cozido, o arroz de bacalhau e o bacalhau dourado; os apreciadores de caça podem preparar-se para o javali (na brasa ou em guisado), o veado e a perdiz estufados, o civet de lebre ou a lebre servida com feijão e repolho, além do arrozinho de pombo bravo. Mas, atenção, por encomenda (está aí o telefone ao lado). Provei, das sobremesas, uma tarte de requeijão e um nadinha de siricaia – pareceram-me regulamentares, mas sem subir o tom. O café, servido em copo de barro, antecede aquele momento de reflexão em que se exageram as qualidades do restaurante. Não vale a pena exagerar. O Zé Varunca deve ser experimentado – a lista é vasta e convidativa.

À Lupa
Vinhos: * *
Digestivos: * *
Acesso: * *
Decoração: * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Tintos: 63
Brancos: 25
Verdes: 5
Aguardentes: 12
Portos e Madeiras: 6
Whiskies: 20
Cervejas: 4

Outros dados
Charutos: não
Estacionamento: não
Adequado levar crianças: não
Bengaleiro: não
Reserva: aconselhável
Preço médio: 15 euros

Zé Varunca
R. Capitão Leitão, 22
2775-226 Parede
Tel: 214 574 306
Encerra ao domingo

in Revista Notícias Sábado - 4 Fevereiro 2006

fevereiro 02, 2006

Multiculturalismo

Não, não vou debater o multiculturalismo. Só a natureza da nossa natureza me interessa. Mas o debate, de facto, devia ser lançado; não sobre o multiculturalismo mas sobre a tolerância. É um mundo difícil, obtuso, complicado, histérico muitas vezes. Mas é o nosso mundo e devemos defendê-lo. Não temos outro. Nascemos nele e uma das suas marcas chama-se, precisamente, "tolerância".

Um jornal dinamarquês, o "Jyllands-Posten", publicou uma série de cartoons em que aparecia a figura do profeta Maomé. O profeta merece-me respeito, mas, como já li o Alcorão (uma simpática prenda do xeque David Munir - e uma boa tradução para o Português), não resisto a sorrir em determinadas passagens e a preocupar-me noutras. Acontece-me frequentemente isso com os chamados "livros sagrados"; os profetas, todos eles, tinham defeitos sonoros (embora um ou dois fossem largamente surdos), alguns fazem rir, outros irritam pela arrogância ou pelas ondas de queixume, outros são-me naturalmente antipáticos, a outros gostaria de convidar para jantar. O editor do "Jyllands-Posten" declarou-se surpreendido com a reacção "no mundo muçulmano", de Gaza ao Paquistão, da Indonésia à própria Copenhaga, suponho.

Não devia sentir-se surpreendido. Salman Rushdie podia ter-lhe explicado como as coisas se passam quando o profeta Maomé está envolvido. Uma boa faixa de intelectuais e de gente da política, apesar de tudo, encontra sempre razões para compreender essas razões, ou pelo menos as razões que levaram à "fatwa" que condenava Salman Rushdie à morte - e, por arrastamento, os seus editores e tradutores. Vamos e venhamos trata-se de uma coisa selvagem condenar alguém à morte por blasfémia. Um ou outro escritor inglês, na altura da "fatwa" lançada por Khomeini contra Rushdie, apareceu a dizer que o autor dos "Versículos satânicos" merecia a ordem para matar decretada em Teerão; ele não teria nada que se meter com o profeta, com o Alcorão ou com os imãs, e, portanto, devia ser punido por isso. Havia uma certa inveja literária, certamente, mas de vez em quando o monstro acorda entre nós, cheio de medo, invocando valores culturais e heranças espirituais: em nome desses valores desculpabiliza-se a tortura, a humilhação de mulheres ou de adúlteros, a excisão feminina, o apedrejamento de homossexuais ou a mutilação de adolescentes que praticaram sexo à margem da lei.

Ora, a verdade é que não há nenhuma lei que obrigue à prática da barbárie, do crime e da tortura. Mas no Ocidente há sempre quem desculpe julgamentos em Guantánamo e perseguições religiosas na Ásia. Há desculpas para tudo, nenhuma vergonha nos escapa.

Esta ideia de tolerar os energúmenos que, em público, queimam livros, bandeiras, jornais e efígies de cada vez que alguém brinca com o profeta, parece-me absurda. Tolerável; mas absurda. Tolerável, porque nós somos tolerantes; mas absurda porque instaura nas nossas ruas, nas nossas casas e nas nossas cabeças uma insuportável aura de medo e de covardia. Não se trata apenas de falar de um Deus que não ri nem quer ser objecto de riso (essa é outra matéria que, se quiserem, se discute a seguir); trata-se do medo e da submissão. O editor do "Jyllands-Posten" agiu bem não pediu desculpas. Disse, além disso (que não pedia desculpas), que não se trata de "um assunto de cartoons", mas de valores mais gerais - os da liberdade, os do riso, os da palavra. O Ocidente permite que se publiquem alarvidades anti-semitas ou trapalhices anticatólicas; mas uma parte dele treme de pavor quando vê os "mullahs" incitarem multidões a queimar bandeiras dinamarquesas por causa de uns cartoons. Eu acho bem que queimem, se lhes apetecer. Mas não aceito que as queimem em minha casa, na minha rua, sob o céu do Ocidente.

Jornal de Notícias - 2 Fevereiro 2006