Sobre o Douro, verdadeiramente
A vista é deslumbrante, o ambiente é simpático e a decoração exigente. A carta do Sessenta Setenta pode revelar surpresas muito agradáveis.
E é aqui que eu digo: "Nunca digas nunca." No meio do nevoeiro do Douro, aquele que desce sobre as águas e deixa a sua margem direita meio escondida entre colinas, a medida que se aproxima da Foz, eu gosto profundamente de Massarelos. Do Cais das Pedras, por exemplo - sempre que passo naquele lugar sei que não posso esquece-lo. Depois, subindo pela Rua da Restauração, há uma ruela que vai dar ao Sessenta Setenta e o nome é o mais indicado para o lugar: Rua Sobre o Douro. Nunca digas nunca, portanto: onde se esperava uma decoração "a propósito", ribeirinha e cheia de acessórios etnográficos, barcos rabelos, romantismos de ocasião, aí estava uma coisa exigente, sóbria, delicada. Não, não digo "suave": as paredes são escuras, o tom vai do cinza ao negro. À noite, a luz (embora com uns holofotes despropositados, logo à entrada) prepara-nos para essa entrada quase triunfal num dos restaurantes mais discutidos da cidade. E vale a pena a discussão? Vale.
Há na ementa do Sessenta Setenta coisas que apetecem ao primeiro olhar: uma sapateira com pêra abacate, presunto com figos, rúcula com 'roquefort' (variante da chicória com parmesão), escabeche de mexilhões (muito bom e com mexilhões frescos), o 'ceviche' (de ressonâncias mexicanas ou da área) ou o 'patattu', que comi na sua versão abrilhantada por queijo derretido, além da minha entrada preferida - 'foie gras' salteado com uvas, uma experiência que recomendo para além da minha própria gula ou até luxúria: aquele que me coube em sorte era suculento, minado pelo agridoce das uvas, poisando sobre um molho suave, quase perfumado. Muito bom.
O passageiro do Sessenta Setenta passa então para as carnes, área em que, além dos bifes (com pimenta, do acém ou alemão), figura um 'carré' de borrego que vi passar à minha frente, dourado, moreno, arrastando uma serie de aromas triunfais, muito próprio para se devorar, o que me deixou impróprio para saborear quer a mão de vitela (ficará para outra vez, enquanto sonho com as suas gelatinas perigosas) quer o pombo com chila - mas imagine a devassidão que estas sugestões transportam - permitindo-me recordar um folhado de 'foie gras' muito exigente e atrevido, cheio de colesterol, do bom, naturalmente. Depois, invertendo a ordem, passamos aos peixes: rodovalho com espargos, bife de atum, Mas com funcho e os bacalhaus. A lula, uma solitária lula (de dimensão razoável, mas uma lula, caramba!) adormecera embalada pelo funcho: boa, saborosa, mas solitária, repito. Não sei se a lula merecia tanta solidão ou se eu não merecia mais do que uma. Fico na dúvida, tanto mais que o sabor era muito apreciável. E os bacalhaus: dourado e a Freixieiro. O dourado, envolvido em polme e repousando sobre uma batata no forno, permitiu ver qual a intenção; mas a batata, com um destino que previa que se tornasse cremosa, estava ligeiramente mal cozida, se me entendem. Felizmente que o bacalhau, um lombo perfeito, não tinha sido expurgado das suas gelatinas e do seu estatuto de peixe salgado, conservando ambas as coisas. Não é um bacalhau, digamos, conforme a tradição, mas não o vi queixar-se. Já quanto ao "à Freixieiro", envolvido em broa, perfumado de azeite excelente (um pormenor a ter em conta, sempre), nada a dizer senão elogiá-lo.
Comi depois um 'brick' de maçã, regular na sua massinha tostada, e a tarte fina de maçã, com aquela boa poeira de canela; a 'marquise' de chocolate era, de facto, uma boa mousse perfeita; o 'souffle grand marnier', muito gabado, foi petiscado em prato amigo e deixou saudades, ao lado de promessas como a tapioca de maracujá, a pêra 'glacée' ou o leite-creme e o mil-folhas.
Quer o leitor conclusões, naturalmente. Com clareza: achei uma cozinha de boa qualidade, com algumas surpresas agradáveis (insisto que prove o 'foie gras' com uvas). Já se sabe que eu não gosto de superlativos finais a não ser quando o meu estômago pede repouso; depois do Sessenta Setenta não precisei muito de repousar - aquela vista era agradável, a sala pareceu-me muito bonita, o cardápio não exigiu esforço de compreensão ou de digestão. Há dias assim. Nunca digas nunca.
À lupa
Vinhos: * * *
Digestivos: * *
Acesso: * * *
Decoração: * * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * * *
Garrafeira
Tintos: 48
Brancos: 19
Verdes Rosés: 5
Espumantes & Champanhes: 3
Aguardentes Portuguesas: 4
Portos e Madeiras: 3
Uísques: 11
Cervejas: 5
Outros dados
Charutos: não
Estacionamento: relativamente fácil
Levar crianças: não
Bengaleiro: sim
Reserva: muito aconselhável
Preço médio: 30 Euros
SESSENTA SETENTA
Rua sobre o Douro. 1 - A 4050-592 Porto
Tel: 22.3406093
Encerra aos domingos
in Revista Notícias Sábado - 25 Fevereiro 2006
E é aqui que eu digo: "Nunca digas nunca." No meio do nevoeiro do Douro, aquele que desce sobre as águas e deixa a sua margem direita meio escondida entre colinas, a medida que se aproxima da Foz, eu gosto profundamente de Massarelos. Do Cais das Pedras, por exemplo - sempre que passo naquele lugar sei que não posso esquece-lo. Depois, subindo pela Rua da Restauração, há uma ruela que vai dar ao Sessenta Setenta e o nome é o mais indicado para o lugar: Rua Sobre o Douro. Nunca digas nunca, portanto: onde se esperava uma decoração "a propósito", ribeirinha e cheia de acessórios etnográficos, barcos rabelos, romantismos de ocasião, aí estava uma coisa exigente, sóbria, delicada. Não, não digo "suave": as paredes são escuras, o tom vai do cinza ao negro. À noite, a luz (embora com uns holofotes despropositados, logo à entrada) prepara-nos para essa entrada quase triunfal num dos restaurantes mais discutidos da cidade. E vale a pena a discussão? Vale.
Há na ementa do Sessenta Setenta coisas que apetecem ao primeiro olhar: uma sapateira com pêra abacate, presunto com figos, rúcula com 'roquefort' (variante da chicória com parmesão), escabeche de mexilhões (muito bom e com mexilhões frescos), o 'ceviche' (de ressonâncias mexicanas ou da área) ou o 'patattu', que comi na sua versão abrilhantada por queijo derretido, além da minha entrada preferida - 'foie gras' salteado com uvas, uma experiência que recomendo para além da minha própria gula ou até luxúria: aquele que me coube em sorte era suculento, minado pelo agridoce das uvas, poisando sobre um molho suave, quase perfumado. Muito bom.
O passageiro do Sessenta Setenta passa então para as carnes, área em que, além dos bifes (com pimenta, do acém ou alemão), figura um 'carré' de borrego que vi passar à minha frente, dourado, moreno, arrastando uma serie de aromas triunfais, muito próprio para se devorar, o que me deixou impróprio para saborear quer a mão de vitela (ficará para outra vez, enquanto sonho com as suas gelatinas perigosas) quer o pombo com chila - mas imagine a devassidão que estas sugestões transportam - permitindo-me recordar um folhado de 'foie gras' muito exigente e atrevido, cheio de colesterol, do bom, naturalmente. Depois, invertendo a ordem, passamos aos peixes: rodovalho com espargos, bife de atum, Mas com funcho e os bacalhaus. A lula, uma solitária lula (de dimensão razoável, mas uma lula, caramba!) adormecera embalada pelo funcho: boa, saborosa, mas solitária, repito. Não sei se a lula merecia tanta solidão ou se eu não merecia mais do que uma. Fico na dúvida, tanto mais que o sabor era muito apreciável. E os bacalhaus: dourado e a Freixieiro. O dourado, envolvido em polme e repousando sobre uma batata no forno, permitiu ver qual a intenção; mas a batata, com um destino que previa que se tornasse cremosa, estava ligeiramente mal cozida, se me entendem. Felizmente que o bacalhau, um lombo perfeito, não tinha sido expurgado das suas gelatinas e do seu estatuto de peixe salgado, conservando ambas as coisas. Não é um bacalhau, digamos, conforme a tradição, mas não o vi queixar-se. Já quanto ao "à Freixieiro", envolvido em broa, perfumado de azeite excelente (um pormenor a ter em conta, sempre), nada a dizer senão elogiá-lo.
Comi depois um 'brick' de maçã, regular na sua massinha tostada, e a tarte fina de maçã, com aquela boa poeira de canela; a 'marquise' de chocolate era, de facto, uma boa mousse perfeita; o 'souffle grand marnier', muito gabado, foi petiscado em prato amigo e deixou saudades, ao lado de promessas como a tapioca de maracujá, a pêra 'glacée' ou o leite-creme e o mil-folhas.
Quer o leitor conclusões, naturalmente. Com clareza: achei uma cozinha de boa qualidade, com algumas surpresas agradáveis (insisto que prove o 'foie gras' com uvas). Já se sabe que eu não gosto de superlativos finais a não ser quando o meu estômago pede repouso; depois do Sessenta Setenta não precisei muito de repousar - aquela vista era agradável, a sala pareceu-me muito bonita, o cardápio não exigiu esforço de compreensão ou de digestão. Há dias assim. Nunca digas nunca.
À lupa
Vinhos: * * *
Digestivos: * *
Acesso: * * *
Decoração: * * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * * *
Garrafeira
Tintos: 48
Brancos: 19
Verdes Rosés: 5
Espumantes & Champanhes: 3
Aguardentes Portuguesas: 4
Portos e Madeiras: 3
Uísques: 11
Cervejas: 5
Outros dados
Charutos: não
Estacionamento: relativamente fácil
Levar crianças: não
Bengaleiro: sim
Reserva: muito aconselhável
Preço médio: 30 Euros
SESSENTA SETENTA
Rua sobre o Douro. 1 - A 4050-592 Porto
Tel: 22.3406093
Encerra aos domingos
in Revista Notícias Sábado - 25 Fevereiro 2006
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