fevereiro 23, 2006

Licenciosidade

O leitor a esta hora já se esqueceu que a Polícia (e creio que uns magistrados) invadiu a redacção de um jornal, o "24 Horas", apreendeu material e obedeceu a ordens, certamente munida dos documentos e instruções necessárias. Mas não esqueça.

Não venho defender a honra perdida dos jornalistas ou da Imprensa. Não se trata de defender a corporação jornalística nem de atacar a Polícia. A Polícia fez o que lhe estava cometido, penso eu. Em meu entender, o jornal fez também o que lhe cabia fazer informar os seus leitores, publicar notícias. Mas, porque se trata do "24 Horas", é natural que não se reúnam à volta do jornal as solidariedades e as indignações habituais. Por isso, eu peço-lhe que não esqueça. E não lho peço em nome de qualquer direito de excepção garantido pela Imprensa ou pelo direito de os jornais publicarem cartoons sobre o profeta Maomé. Aqui, o caso é outro e chama-se "segredo de Justiça", que é, como toda ou quase toda a gente sabe, um dos segredos mais mal guardados entre nós. Não que não mereça ser guardado - mas porque, nos corredores por onde passa, há sempre portas e janelas por onde se escapa um pouco dele. Magistrados, advogados, juízes, investigadores policiais ou não, e outros eventuais manuseadores de processos em "segredo de Justiça", todos são suspeitos de desrespeitar o princípio segundo o qual um segredo existe, precisamente, para ser guardado.

Não lhe causa impressão, a si, leitor, que toda a comunidade ligada à Justiça, ao jornalismo e à política, trate do "problema do segredo de Justiça" há tantos anos e até agora não se tenha chegado a uma solução? Na verdade, o "segredo de Justiça" é revelado aqui um pouco, ali outro tanto, mais além quando for conveniente. O que sugere, claramente, que convém existir "segredo de Justiça" para que distintos operadores possam violá-lo de acordo com necessidades, conveniências ou azares. É difícil, além de aborrecido, constatar que essa suspeita permanente paira sobre as diversas corporações envolvidas nos tribunais e nas investigações judiciais. Mas é que, além de pairar a suspeita, existe mesmo essa evidência.

Como se sabe, o "24 Horas" divulgou informações sobre o chamado "envelope 9". Ou seja deu a conhecer a sua existência; e a existência do "envelope 9" envolvia entidades, figuras, autoridades, nomes e influências - além de uma enorme trapalhada processual que nos permite duvidar, mais uma vez, do próprio processo da Casa Pia e do mecanismo das escutas telefónicas. A Procuradoria-Geral da República prometeu investigar, tanto mais que o presidente da República e o primeiro-ministro insistiram em obter explicações. Até agora, que se saiba, depois de uma ida do procurador ao Parlamento (onde se portou muito bem) - e já passa mais de um mês - a ida ao "24 Horas" e subsequente apreensão de material, é a única prova de que parece haver investigações. Claro que seria possível proceder com mais serenidade e discrição, mas um assalto a um jornal (e ainda por cima ao "24 Horas", o nosso pequeno tablóide) teria efeitos mediáticos evidentes. E o leitor pensaria: eles estão, afinal, a trabalhar; eles estão, afinal, a tirar isto a limpo.

Repare que, nesta altura, já não estamos a questionar o "segredo de Justiça". Estamos a averiguar quem violou o "segredo de Justiça" e essa responsabilidade não é apenas de quem divulgou peças do processo. Daqui a um mês, o leitor quer saber quem passou peças do processo para a Imprensa e tem todo o direito a querer fazer essa pergunta. Que magistrados, que investigadores, que advogados o fizeram? É evidente que é mais fácil punir a "licenciosidade da Imprensa" e não responder a nada disso. Eu defendo a "licenciosidade da Imprensa", mas quero saber quem a fomenta.

Jornal de Notícias - 23 Fevereiro 2006