Multiculturalismo
Não, não vou debater o multiculturalismo. Só a natureza da nossa natureza me interessa. Mas o debate, de facto, devia ser lançado; não sobre o multiculturalismo mas sobre a tolerância. É um mundo difícil, obtuso, complicado, histérico muitas vezes. Mas é o nosso mundo e devemos defendê-lo. Não temos outro. Nascemos nele e uma das suas marcas chama-se, precisamente, "tolerância".
Um jornal dinamarquês, o "Jyllands-Posten", publicou uma série de cartoons em que aparecia a figura do profeta Maomé. O profeta merece-me respeito, mas, como já li o Alcorão (uma simpática prenda do xeque David Munir - e uma boa tradução para o Português), não resisto a sorrir em determinadas passagens e a preocupar-me noutras. Acontece-me frequentemente isso com os chamados "livros sagrados"; os profetas, todos eles, tinham defeitos sonoros (embora um ou dois fossem largamente surdos), alguns fazem rir, outros irritam pela arrogância ou pelas ondas de queixume, outros são-me naturalmente antipáticos, a outros gostaria de convidar para jantar. O editor do "Jyllands-Posten" declarou-se surpreendido com a reacção "no mundo muçulmano", de Gaza ao Paquistão, da Indonésia à própria Copenhaga, suponho.
Não devia sentir-se surpreendido. Salman Rushdie podia ter-lhe explicado como as coisas se passam quando o profeta Maomé está envolvido. Uma boa faixa de intelectuais e de gente da política, apesar de tudo, encontra sempre razões para compreender essas razões, ou pelo menos as razões que levaram à "fatwa" que condenava Salman Rushdie à morte - e, por arrastamento, os seus editores e tradutores. Vamos e venhamos trata-se de uma coisa selvagem condenar alguém à morte por blasfémia. Um ou outro escritor inglês, na altura da "fatwa" lançada por Khomeini contra Rushdie, apareceu a dizer que o autor dos "Versículos satânicos" merecia a ordem para matar decretada em Teerão; ele não teria nada que se meter com o profeta, com o Alcorão ou com os imãs, e, portanto, devia ser punido por isso. Havia uma certa inveja literária, certamente, mas de vez em quando o monstro acorda entre nós, cheio de medo, invocando valores culturais e heranças espirituais: em nome desses valores desculpabiliza-se a tortura, a humilhação de mulheres ou de adúlteros, a excisão feminina, o apedrejamento de homossexuais ou a mutilação de adolescentes que praticaram sexo à margem da lei.
Ora, a verdade é que não há nenhuma lei que obrigue à prática da barbárie, do crime e da tortura. Mas no Ocidente há sempre quem desculpe julgamentos em Guantánamo e perseguições religiosas na Ásia. Há desculpas para tudo, nenhuma vergonha nos escapa.
Esta ideia de tolerar os energúmenos que, em público, queimam livros, bandeiras, jornais e efígies de cada vez que alguém brinca com o profeta, parece-me absurda. Tolerável; mas absurda. Tolerável, porque nós somos tolerantes; mas absurda porque instaura nas nossas ruas, nas nossas casas e nas nossas cabeças uma insuportável aura de medo e de covardia. Não se trata apenas de falar de um Deus que não ri nem quer ser objecto de riso (essa é outra matéria que, se quiserem, se discute a seguir); trata-se do medo e da submissão. O editor do "Jyllands-Posten" agiu bem não pediu desculpas. Disse, além disso (que não pedia desculpas), que não se trata de "um assunto de cartoons", mas de valores mais gerais - os da liberdade, os do riso, os da palavra. O Ocidente permite que se publiquem alarvidades anti-semitas ou trapalhices anticatólicas; mas uma parte dele treme de pavor quando vê os "mullahs" incitarem multidões a queimar bandeiras dinamarquesas por causa de uns cartoons. Eu acho bem que queimem, se lhes apetecer. Mas não aceito que as queimem em minha casa, na minha rua, sob o céu do Ocidente.
Jornal de Notícias - 2 Fevereiro 2006
Um jornal dinamarquês, o "Jyllands-Posten", publicou uma série de cartoons em que aparecia a figura do profeta Maomé. O profeta merece-me respeito, mas, como já li o Alcorão (uma simpática prenda do xeque David Munir - e uma boa tradução para o Português), não resisto a sorrir em determinadas passagens e a preocupar-me noutras. Acontece-me frequentemente isso com os chamados "livros sagrados"; os profetas, todos eles, tinham defeitos sonoros (embora um ou dois fossem largamente surdos), alguns fazem rir, outros irritam pela arrogância ou pelas ondas de queixume, outros são-me naturalmente antipáticos, a outros gostaria de convidar para jantar. O editor do "Jyllands-Posten" declarou-se surpreendido com a reacção "no mundo muçulmano", de Gaza ao Paquistão, da Indonésia à própria Copenhaga, suponho.
Não devia sentir-se surpreendido. Salman Rushdie podia ter-lhe explicado como as coisas se passam quando o profeta Maomé está envolvido. Uma boa faixa de intelectuais e de gente da política, apesar de tudo, encontra sempre razões para compreender essas razões, ou pelo menos as razões que levaram à "fatwa" que condenava Salman Rushdie à morte - e, por arrastamento, os seus editores e tradutores. Vamos e venhamos trata-se de uma coisa selvagem condenar alguém à morte por blasfémia. Um ou outro escritor inglês, na altura da "fatwa" lançada por Khomeini contra Rushdie, apareceu a dizer que o autor dos "Versículos satânicos" merecia a ordem para matar decretada em Teerão; ele não teria nada que se meter com o profeta, com o Alcorão ou com os imãs, e, portanto, devia ser punido por isso. Havia uma certa inveja literária, certamente, mas de vez em quando o monstro acorda entre nós, cheio de medo, invocando valores culturais e heranças espirituais: em nome desses valores desculpabiliza-se a tortura, a humilhação de mulheres ou de adúlteros, a excisão feminina, o apedrejamento de homossexuais ou a mutilação de adolescentes que praticaram sexo à margem da lei.
Ora, a verdade é que não há nenhuma lei que obrigue à prática da barbárie, do crime e da tortura. Mas no Ocidente há sempre quem desculpe julgamentos em Guantánamo e perseguições religiosas na Ásia. Há desculpas para tudo, nenhuma vergonha nos escapa.
Esta ideia de tolerar os energúmenos que, em público, queimam livros, bandeiras, jornais e efígies de cada vez que alguém brinca com o profeta, parece-me absurda. Tolerável; mas absurda. Tolerável, porque nós somos tolerantes; mas absurda porque instaura nas nossas ruas, nas nossas casas e nas nossas cabeças uma insuportável aura de medo e de covardia. Não se trata apenas de falar de um Deus que não ri nem quer ser objecto de riso (essa é outra matéria que, se quiserem, se discute a seguir); trata-se do medo e da submissão. O editor do "Jyllands-Posten" agiu bem não pediu desculpas. Disse, além disso (que não pedia desculpas), que não se trata de "um assunto de cartoons", mas de valores mais gerais - os da liberdade, os do riso, os da palavra. O Ocidente permite que se publiquem alarvidades anti-semitas ou trapalhices anticatólicas; mas uma parte dele treme de pavor quando vê os "mullahs" incitarem multidões a queimar bandeiras dinamarquesas por causa de uns cartoons. Eu acho bem que queimem, se lhes apetecer. Mas não aceito que as queimem em minha casa, na minha rua, sob o céu do Ocidente.
Jornal de Notícias - 2 Fevereiro 2006
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