Pedir desculpa
O senhor ministro dos Estrangeiros não tem culpa e os seus interessantes argumentos seriam desmentidos sem necessidade de recorrer a grande bibliografia. Mas há neles um pormenor que nos devia deixar perplexos a tentação de fazer doutrina sobre o "choque de civilizações" pedindo desculpa por anos e anos de ignomínia. Esta escola de ressentimento cultural, ideologicamente pobre e desgraçadinha, não lembra apenas o tom "apaziguador" de Chamberlain: é, na verdade, uma mistificação perigosa, misturando no mesmo caldeirão as Cruzadas, a criação do estado de Israel, o "choque de civilizações", o riso de Voltaire, a invasão do Iraque, o empobrecimento do Médio Oriente, a Inquisição e o futebol euro-árabe. Isto é um truque pobre. No caso das repetidas declarações do senhor Ministro dos Estrangeiros, além de um truque pobre é uma ameaça de ventríloquo.
Não haveria polémica se o senhor Ministro dos Estrangeiros se mantivesse no seu lugar, tratando da diplomacia. Mas há aqui uma questão doutrinal, e o Estado português não devia, através de um ministro, tomar posições definitivas sobre a matéria, designando o Ocidente como o Grande Satã e dispondo-se, portanto, a um debate de que sairá razoavelmente chamuscado.
Eu não sei bem quem são os meus antepassados e quantos crimes eles cometeram desde 1143, à espadeirada, varrendo inimigos e adversários, navegando para lá dos mares ou, como em Camões, arrancando cabeças com eficácia e em nome da "santa fé". Mas não carrego essa culpa sobre os meus ombros. Tivemos monstros razoáveis, sim. Na verdade, temos no armário, guardados, alguns esqueletos infames e é natural que, de vez em quando, não nos orgulhemos deles. De Afonso Henriques (cortando cabeças no campo de batalha) ao apoio dado a Francisco Xavier na Índia (que, pela fogueira, assassinou bastante), passando pela rapaziada das naus (leiam Camões, tão "politicamente incorrecto") e chegando à guerra colonial, o rasto não é simpático. Já fizemos o balanço. O cidadão Freitas do Amaral ainda não, mas há muita gente que já fez esse balanço antes de ele ter descoberto a luz da nova fé e o ressentimento pós-colonial. O cidadão Freitas do Amaral descobriu recentemente que o Ocidente foi muito sacana e que o resto do mundo está cheio de vítimas da sua malvadez. Chegou atrasado, mais uma vez.
O seu ressentimento é, no entanto, muito selectivo. Em breve - oh, bastar-lhe-á ler um pouco de Dante e o suficiente de Camões - proporá uma revisão da nossa história cultural com base no nosso complexo de culpa; e com base no nosso complexo de culpa e na evocação das numerosas vítimas do passado (além das suas obsessões mais recentes) vai castigar-nos a todos, exigindo silêncio e a procissão de arrependidos, de dedo levantado e com aquele aparente bom-senso transformado em arma diplomática. Tudo isto é muito estranho (ou não), sobretudo depois de o dr. Vitalino Canas, muito irascível, ter aparecido em cena para proceder a exercícios de equivalência moral entre "cartoonistas" e multidões incendiárias.
O prof. Freitas do Amaral acha que devemos pedir desculpa por algumas passagens de Camões, pelo riso de Dante, pelo sarcasmo de Shakespeare, pelos erros de Afonso de Albuquerque, pela viagem de Vasco da Gama, pelos fuzis de Mouzinho, pelo nosso vergonhoso passado. E, com isso, devemos também justificar os incêndios nas embaixadas e as "fatwa" contra escritores, desenhadores e outros cidadãos, inclusive oriundos de países de cultura islâmica dominante. Ele acha que o ressentimento é uma coisa razoável e justa. Ele acha que devemos manter-nos em silêncio.
Jornal de Notícias - 16 Fevereiro 2006
Não haveria polémica se o senhor Ministro dos Estrangeiros se mantivesse no seu lugar, tratando da diplomacia. Mas há aqui uma questão doutrinal, e o Estado português não devia, através de um ministro, tomar posições definitivas sobre a matéria, designando o Ocidente como o Grande Satã e dispondo-se, portanto, a um debate de que sairá razoavelmente chamuscado.
Eu não sei bem quem são os meus antepassados e quantos crimes eles cometeram desde 1143, à espadeirada, varrendo inimigos e adversários, navegando para lá dos mares ou, como em Camões, arrancando cabeças com eficácia e em nome da "santa fé". Mas não carrego essa culpa sobre os meus ombros. Tivemos monstros razoáveis, sim. Na verdade, temos no armário, guardados, alguns esqueletos infames e é natural que, de vez em quando, não nos orgulhemos deles. De Afonso Henriques (cortando cabeças no campo de batalha) ao apoio dado a Francisco Xavier na Índia (que, pela fogueira, assassinou bastante), passando pela rapaziada das naus (leiam Camões, tão "politicamente incorrecto") e chegando à guerra colonial, o rasto não é simpático. Já fizemos o balanço. O cidadão Freitas do Amaral ainda não, mas há muita gente que já fez esse balanço antes de ele ter descoberto a luz da nova fé e o ressentimento pós-colonial. O cidadão Freitas do Amaral descobriu recentemente que o Ocidente foi muito sacana e que o resto do mundo está cheio de vítimas da sua malvadez. Chegou atrasado, mais uma vez.
O seu ressentimento é, no entanto, muito selectivo. Em breve - oh, bastar-lhe-á ler um pouco de Dante e o suficiente de Camões - proporá uma revisão da nossa história cultural com base no nosso complexo de culpa; e com base no nosso complexo de culpa e na evocação das numerosas vítimas do passado (além das suas obsessões mais recentes) vai castigar-nos a todos, exigindo silêncio e a procissão de arrependidos, de dedo levantado e com aquele aparente bom-senso transformado em arma diplomática. Tudo isto é muito estranho (ou não), sobretudo depois de o dr. Vitalino Canas, muito irascível, ter aparecido em cena para proceder a exercícios de equivalência moral entre "cartoonistas" e multidões incendiárias.
O prof. Freitas do Amaral acha que devemos pedir desculpa por algumas passagens de Camões, pelo riso de Dante, pelo sarcasmo de Shakespeare, pelos erros de Afonso de Albuquerque, pela viagem de Vasco da Gama, pelos fuzis de Mouzinho, pelo nosso vergonhoso passado. E, com isso, devemos também justificar os incêndios nas embaixadas e as "fatwa" contra escritores, desenhadores e outros cidadãos, inclusive oriundos de países de cultura islâmica dominante. Ele acha que o ressentimento é uma coisa razoável e justa. Ele acha que devemos manter-nos em silêncio.
Jornal de Notícias - 16 Fevereiro 2006
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