O leitor sabe como começam as minhas viagens: por uma página solta, uma interjeição perdida no meio de uma memória – e por uma música. Desta vez vou buscá-la aos anos setenta, quando ouvi pela primeira vez Os Tubarões (o primeiro disco era Tabanca), uma banda de Cabo Verde que deu nova vida às mornas locais. Da banda ficou-me o nome de Ildo Lobo (infelizmente desaparecido em Outubro de 2004), um dos mais extraordinários cantores caboverdianos que retomo, sempre que posso, do disco Nós Morna, deliciosa evocação e recriação desse género musical que faz do mar das “ilhas afortunadas” (eram assim conhecidas na literatura quinhentista) um território romântico e ultra-romântico, o modo de mitigar o sofrimento de séculos de isolamento, de pobreza, de fome – mas também o de mostrar que a poesia nasce onde sempre estiveram o génio e a doçura, o sofrimento e a capacidade de o enfrentar. Cesária Évora faz parte desse universo, mas, antes dela, a profundidade absoluta da voz e do talento triste de Bana, o divertimento desse António Travadinha já desaparecido, a ironia romântica de Tito Paris, ou de Celina Pereira, a voz perfumada de Ana Firmino, de Teté Alhinho (um colosso), os ritmos de Teófilo Chantre, ou Orlando Pantera, Boy Gé Mendes, ou Gilyto, a beleza dos tons de Titina, as antigas canções de Gardénia Benrós, tudo distribuído pelo batuque, pela coladêra, pelo funaná, pela abençoada morna, em compositores tão fatais como B. Leza, evidentemente, Kaká Barbosa, Frank Cavaquim, Rendall, Spencer ou Vasco Martins.
Cabo Verde manteve a sua dignidade e conservou a sua beleza. Recusou a vitimização que tantos novos países africanos transformaram em discurso oficial, e encontrou no “turismo” uma vocação natural. Mas o turismo, como o leitor compreende, é outra coisa. Eu falo de viagens. Não apenas das praias de Cabo Verde, mas das alturas e das colinas escuras de Santo Antão, da imensa solidão atlântica da Brava, onde a beleza pura invade a visão do mar, para o transformar e cativar em seu redor; da magia distinta do Pico do Fogo, de onde o mundo parece mais pequeno. Uma das minhas cidades de sempre é o Mindelo e não é difícil imaginar, mesmo à distância, essa tranquilidade das ruas à hora da sesta, que rivaliza com a animação que desce sobre a cidade mal cai a noite, transformando-a numa terra de música, de boémia, de amores furtivos e divertidos (como vêm na prosa de Germano Almeida), de cenas de outro tempo, evocando aquela poesia mansa e intensa, como a de Eugénio Tavares (que nasceu na Brava, convém dizer) evocando as saudades e a «dor de amor»: «Dicham chorâ/ Destino de home:/ Es dor/ Que ca tem nome:/ Dor de crecheu,/ Dor de sodade/ De alguem/ Que’n q’ré, que q’rem...»
Muitos dos meus lugares são ilhas do meio do Atlântico, como Cabo Verde, com os seus caminhos perdidos entre desertos que se transformaram em vida única, exemplar, digna, invejável. O Mindelo, em São Vicente, é um desses lugares inesquecíveis, ponto de chegada e de partida das suas histórias mais negras (a da escravatura, a do ciclo do carvão, a da febre amarela, a das secas – o flagelo do Vento Leste) e das mais luminosas (a da sua música, a da sua intimidade). Eu passaria metade dessa vida sentado a uma mesa do Café Mindelo, lendo os jornais que chegassem ao Porto Grande, como na época dos transatlânticos, para que não dissessem que estava isolado do mundo. A minha praia seria a da Lajinha com sábados grandes em Salamansa e na Baía das Gatas, com crepúsculos desses, negros e dourados, mesmo no meio do mar. Como um coração de coral no meio do mar.
in Outro Hemisfério – Revista Volta ao Mundo – Fevereiro 2008Etiquetas: Volta ao mundo