O mapa de Svolvaer
Phileas Fogg, a personagem de Julio Verne, segurava num deles - num mapa. Por ele desenhou a sua viagem em redor do mundo. Quando, pela primeira vez, cheguei a Snaefellsjokull, o lugar onde Verne imaginava que se desceria ao centro da Terra, eu levava esse mapa comigo. É vaidade pura, sim - mas também é a verdade pura. Aquele mapa onde Phileas Fogg assinalou passagens, montanhas, ventos, velocidades e paragens, andou sempre comigo de viagem em viagem, guardado entre as coisas que nunca perdi ao longo da vida. Perdi outras. Perdi muitas. Mas nunca esse mapa.
Lembro-me de vários mapas, aliás. Por um deles, pendurado numa sala esbranquiçada, com cheiro de pó e de cal, estudei a geografia portuguesa na altura em que havia províncias ultramarinas. Também aprendi o que eram elevações, penínsulas, istmos, vales, depressões, planaltos, apeadeiros ferroviários e afluentes. O mundo alterou-se substancialmente mas nunca esqueci esses nomes.
Outro mapa fundamental encontrava-se, para minha felicidade, numa agência de viagens da Wasteels, em Lisboa, bem perto de Santa Apolónia - e eu teria vinte anos, aproximadamente, ou menos. A primeira vez que me aproximei daquele funcionário discreto, sorridente e tímido, pronunciei erradamente o nome de uma cidade onde queria ir: Svolvaer (um dia explicarei porque Svolvaer). Ele, que teria mais uns dez anos do que eu, não perdeu o sorriso e invocou, vagamente, o muito que havia a fazer naquela altura do ano. Eu queria comprar o inter-rail (era o nosso verdadeiro passaporte europeu), mas queria ter a certeza de que o passe ferroviário me garantia a entrada (triunfal, admito, mas só na minha imaginação) em Svolvaer. Ele não pestanejou. Disse apenas: "Pode, com um pequeno suplemento. Ai uns dois contos para a viagem a partir de Trondheim." Senti-me derrotado. Ele sabia onde ficava Svolvaer, mencionava Trondheim e, se fosse preciso, estou hoje em crer, desenharia com o lápis toda a geografia da Noruega, incluindo aquela devassidão de fiordes e de ilhas escuras. Comprei o inter-rail (mais os suplementos de barco) e a minha viagem levou-me a Svolvaer. Devo isso aquele funcionário da Wasteels.
No ano seguinte, em Junho, entrei de novo na agenda. "Lembro-me de si" -, murmurou ele. "Quis ir a Noruega. Este ano vai onde." Falei longamente sobre o Norte da Europa e mencionei a Laponia, a Carélia, o Báltico, a Finlândia. Puxou de um mapa e estudámos o percurso durante vinte minutos. Era um mapa excelente. Paguei o inter-rail e os suplementos de ferries (da Silja e da Viking Line, lembro-me ainda). Voltei no ano seguinte - faltava-me conhecer a Suécia, no fim de contas. Ele abriu o mesmo mapa a minha frente, alisou a Suécia com a mão esquerda e, com a direita, pareceu que desenhava os percursos dos gansos que acompanhavam Nils Holgersson na Viagem Maravilhosa, de Selma Lagerloff, atravessando campos e estacões do ano. Com o guia ferroviário estudámos conexões, travessias de canais e toda a geringonça que os utilizadores de inter-rail conhecem - e que me permitiu, nesse ano, bater o meu recorde anterior de noites seguidas dormindo em comboio, que ia em 19. Nesse ano, passei a 22. Como prémio por três anos de fidelidade, sai da Wasteels com aquele guia ferroviário precioso - foi uma bela oferta. Dai em diante, com o guia completo dos comboios europeus, eu podia orientar-me pelo mundo fora.
Só ao arrumar as coisas da viagem na mochila que me acompanhou durante seis anos de ferrovias do mundo inteiro reparei que, no interior do interior do guia (ligeiramente mais pequeno do que as Páginas Amarelas), estava, dobrado, o mapa em que, Verão após Verão, o senhor da Wasteels e eu tínhamos desenhado a viagem, antes de ela acontecer. E um cartão: "Boa viagem." Mais nada.
Vinte anos depois dessa viagem, ainda tenho o mapa. Não o perdi por acaso. Perdi muitas outras coisas na minha vida. O mundo alterou-se, as fronteiras mudaram, as ferrovias desapareceram ou modernizaram-se, mas esse mapa recorda-me, por um traço a lápis, a localização exacta de Svolvaer, na Noruega. Tem outras anotações, mas nenhuma como essa me recorda a gentileza e a delicadeza de um grande agente de viagens de que nem sei o nome, mas a quem agradeço vinte anos depois.
in Outro hemisfério – Revista Volta ao Mundo – Outubro 2005
Lembro-me de vários mapas, aliás. Por um deles, pendurado numa sala esbranquiçada, com cheiro de pó e de cal, estudei a geografia portuguesa na altura em que havia províncias ultramarinas. Também aprendi o que eram elevações, penínsulas, istmos, vales, depressões, planaltos, apeadeiros ferroviários e afluentes. O mundo alterou-se substancialmente mas nunca esqueci esses nomes.
Outro mapa fundamental encontrava-se, para minha felicidade, numa agência de viagens da Wasteels, em Lisboa, bem perto de Santa Apolónia - e eu teria vinte anos, aproximadamente, ou menos. A primeira vez que me aproximei daquele funcionário discreto, sorridente e tímido, pronunciei erradamente o nome de uma cidade onde queria ir: Svolvaer (um dia explicarei porque Svolvaer). Ele, que teria mais uns dez anos do que eu, não perdeu o sorriso e invocou, vagamente, o muito que havia a fazer naquela altura do ano. Eu queria comprar o inter-rail (era o nosso verdadeiro passaporte europeu), mas queria ter a certeza de que o passe ferroviário me garantia a entrada (triunfal, admito, mas só na minha imaginação) em Svolvaer. Ele não pestanejou. Disse apenas: "Pode, com um pequeno suplemento. Ai uns dois contos para a viagem a partir de Trondheim." Senti-me derrotado. Ele sabia onde ficava Svolvaer, mencionava Trondheim e, se fosse preciso, estou hoje em crer, desenharia com o lápis toda a geografia da Noruega, incluindo aquela devassidão de fiordes e de ilhas escuras. Comprei o inter-rail (mais os suplementos de barco) e a minha viagem levou-me a Svolvaer. Devo isso aquele funcionário da Wasteels.
No ano seguinte, em Junho, entrei de novo na agenda. "Lembro-me de si" -, murmurou ele. "Quis ir a Noruega. Este ano vai onde." Falei longamente sobre o Norte da Europa e mencionei a Laponia, a Carélia, o Báltico, a Finlândia. Puxou de um mapa e estudámos o percurso durante vinte minutos. Era um mapa excelente. Paguei o inter-rail e os suplementos de ferries (da Silja e da Viking Line, lembro-me ainda). Voltei no ano seguinte - faltava-me conhecer a Suécia, no fim de contas. Ele abriu o mesmo mapa a minha frente, alisou a Suécia com a mão esquerda e, com a direita, pareceu que desenhava os percursos dos gansos que acompanhavam Nils Holgersson na Viagem Maravilhosa, de Selma Lagerloff, atravessando campos e estacões do ano. Com o guia ferroviário estudámos conexões, travessias de canais e toda a geringonça que os utilizadores de inter-rail conhecem - e que me permitiu, nesse ano, bater o meu recorde anterior de noites seguidas dormindo em comboio, que ia em 19. Nesse ano, passei a 22. Como prémio por três anos de fidelidade, sai da Wasteels com aquele guia ferroviário precioso - foi uma bela oferta. Dai em diante, com o guia completo dos comboios europeus, eu podia orientar-me pelo mundo fora.
Só ao arrumar as coisas da viagem na mochila que me acompanhou durante seis anos de ferrovias do mundo inteiro reparei que, no interior do interior do guia (ligeiramente mais pequeno do que as Páginas Amarelas), estava, dobrado, o mapa em que, Verão após Verão, o senhor da Wasteels e eu tínhamos desenhado a viagem, antes de ela acontecer. E um cartão: "Boa viagem." Mais nada.
Vinte anos depois dessa viagem, ainda tenho o mapa. Não o perdi por acaso. Perdi muitas outras coisas na minha vida. O mundo alterou-se, as fronteiras mudaram, as ferrovias desapareceram ou modernizaram-se, mas esse mapa recorda-me, por um traço a lápis, a localização exacta de Svolvaer, na Noruega. Tem outras anotações, mas nenhuma como essa me recorda a gentileza e a delicadeza de um grande agente de viagens de que nem sei o nome, mas a quem agradeço vinte anos depois.
in Outro hemisfério – Revista Volta ao Mundo – Outubro 2005
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