Invenções para recordar o Índico
Há coisas que passam e não voltam, nunca voltam, nunca regressam àquele terraço diante do indico. Mas várias vezes tenho tentado reproduzir um caril de frango de Quelimane, como esse. Nunca consegui.
Posso contar-lhes, vagamente, que o melhor caril da minha vida não foi comido na Índia mas em Moçambique, na deliciosa Quelimane, numa tarde de calor e chuva, em Maio de 1995. A imagem de Quelimane (e podia ser de Inhambane, a bela, a terra do poeta Rui Knopfli) sobrepõe-se-me ainda a todas as outras dessa viagem a Moçambique: eu estava - depois de uma viagem de horas por estradas de pó - sentado a uma mesa de uma barraquinha de rua, a beber Black Label. Bebi de mais. Durante o resto da noite bebi mais, e uma das razões tinha a ver com aquele aviso sinistro. derrotado, medíocre e mesquinho; “Cuidado com a malária, não bebas whisky com gelo.” Eu bebi whisky com gelo. Acordei. no dia seguinte. com a sensação de o mundo ter, vagamente, recomeçado diante daquela visão do Indico, azul e brilhante, vasto, cheio de barcos, de redes de pesca, de miúdos que se escapavam por entre as pedras do cais, brincando a meio da manhã. Se não fosse o livro sobre o qual tinha acabado por adormecer, eu próprio teria pensado que nunca saíra de Quelimane antes daquela manhã. Viajar tem perdições e reencontros, demónios e ventanias. Eu gostaria de ter reencontrado aquilo que nem sequer perdi, mas nunca cheguei a esse ponto. Limitei-me a saborear. Uma das coisas que saboreei em Quelimane foi um caril espantoso - sei que é irrepetível, como grande parte das boas coisas que vêm com as viagens. Tinha aquele aroma, indescritível, o sabor, sem dicionários; as texturas, sem gramáticas. Limitei-me a come-lo em casa de uns amigos, num terraço iluminado pela derradeira luz do dia, acompanhado de refrigerantes e cerveja Manica. Só quando provava uma bebinca extraordinária (aquele bolo de sete camadas) pedi a receita. Era tarde. Há coisas que passam e não voltam, nunca voltam, nunca regressam àquele terraço diante do Indico - e eu provavelmente também não.
Mas varias vezes tenho tentado reproduzir um caril de frango de Quelimane, como esse. Nunca consegui. Faço o meu.
Começo por aquecer o óleo numa panela de fundo firme espesso; junto uma cebola e dois dentes de alho para um refogado profundo, em logo lento, que demorará pelo menos cinco minutos, até que a cebola se desfaça e não se distinga dos alhos picados. Durante esse tempo, num almofariz misturo e esmago ligeiramente sementes de coentro, duas colheres de chá de cardamomo, quatro cravinhos, cominhos e um pauzinho de canela, alem de três ou quatro malaguetas bem picantes. Daí resulta uma poeira a que acrescento o pó de caril e um nadinha de gengibre raspado.
Os pedaços do frango estão, nesta altura, preparados e limpos: passo-os por farinha e junto-os ao refogado; deixo que fritem e mexo algumas vezes, durante cinco minutos; cubro-os então com as especiarias, mexo novamente e junto uma chávena de chá de leite de coco (o ideal, eu sei, é coco raspado e espremido no momento, mas não se pode ter tudo) e cerca de 300 gramas de tomate maduro, sem peles e sem grainhas, passado pelo liquidificador (triturador). Acrescento ainda duas chávenas de água e junto uma pitada de sal. Tapo e deixo cozinhar em fogo muito lento por cerca de 45 minutos ou ate que o frango esteja “naquele ponto”.
0 tomate é uma contribuição moçambicana e europeia àqueles odores e texturas que vêm da península das monções; sei que é dispensável, mas ficou a marcar-me a paleta de cores.
Escuso de dizer que acompanho o caril, cremoso, com um arroz branco, cheio de vapores e de perfumes: basmati estará bem, mas não é necessário. Estamos a falar de África e de Moçambique, onde essas ninharias não entram pela porta das mercearias.
Ingredientes
+1 frango
+ 1 colher de sopa de coentro em grão
+ 1 colher de chá de cardamomo
+ 4 cravinhos
+ 1 pau de canela
+ 1 colher de chá de cominhos
+ 1 cebola (roxa de preferencia, muito picada)
+ 2 dentes de alho
+ 4 malaguetas
+ 1 colher de chá com raspas de gengibre
+ 5 colheres de sopa de óleo
+ 300 g de tomate maduro
+ leite de côco
in Atlas de cozinha – Revista Volta ao Mundo – Outubro 2005
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