setembro 01, 2005

Bucha & Estica

Não que eu saiba exactamente o que se passava, mas suspeito. Mário Soares estava bem onde estava: velho patriarca, dirigia a sua fundação, escrevia as suas memórias, dava opiniões, ganhava dinheiro com conferências, circulava nas universidades, aparecia nas ruas, era citado, a gente suportava-lhe os exageros. Para todos os efeitos, estava vivo. Cavaco Silva, ao que parece, também estava vivo: tratava dos netos, olhava os indicadores do Banco de Portugal, era considerado, escrevia as suas memórias, gozava o espectáculo, era citado, a gente suportava-lhe os tiques.

O que faz com que essas duas almas saíssem dos seus retiros e comparecessem a uma nova corrida eleitoral? O que faz com que essas duas figuras abandonassem a tranquilidade relativa dos seus lares e da sua posteridade para avançarem, pelo meio do povo, atirando beijos nos mercados e sendo apalpados por presidentes de bombeiros e concelhias do PS e do PSD durante uma campanha eleitoral? O que os leva a aceitar o opróbrio de arrastarem as suas cãs respeitáveis pelas paredes da pátria, para aparecerem em cartazes onde alguém vai pintar-lhes os dentes de preto e desenhar sacanagens?

Irão eles abandonar as suas reformas, a sua leitura dos periódicos de manhã, os seus passeios a pé, as séries de tv ao serão e os remédios caseiros para a gripe – para se dedicarem a salvar a pátria? Não. A pátria não precisa de ser salva. Precisa de levar pancada, para ver se aprende.

O que eles vêm fazer é ajustar contas. Um deles vinha ocupar o vazio político à direita, até agora bombardeado por figuras sem carácter e sem força. O outro, na verdade, não suporta “o gajo” e, como não conseguiu demiti-lo há dez anos, vem agora evitar um “passeio triunfal”. Além de não suportar “o gajo”, também não morre de amores pela tralha que herdou o PS e ganhou eleições com maioria. Enfim, o Bucha e o Estica odeiam-se. Um representa o republicanismo histórico e a tradição conspiratória republicana, o herói que diz o nome para que logo se abram as portas e que tem já o seu nome gravado, com brilho, nos anais do século XX. O outro representa o homem português desconfiado da política, arrastando a aura do homem que compreende as estatísticas e encheu o país com dinheiro, estradas e confiança.

E será disto que se vai falar dos próximos tempos: do Bochechas e do Gajo, do Marocas e do Cavaco, do Bucha e do Estica. Não vai ser um combate de titãs. Será um combate de dinossauros encarando a extinção da espécie. Não vai ser um “confronto ideológico”, como vaticinava Soares; vai ser um ajuste de contas e, parece-me, uma exibição de ressentimentos.

E sabem porque aconteceu isto? Porque, no fim de contas, os pequenos e subsequentes dinossauros ou não tiveram coragem de ousar mais alto ou se submeteram à lógica da sua vidinha. Ou não revelaram nenhum gesto de grandiosidade que marcasse a vida pública ou não merecem, pura e simplesmente, que se mencione o seu nome como alternativa.

A culpa, bem vistas as coisas, não é de Soares nem de Cavaco. Eles apenas representam, cada um à sua medida, dois mundos que já não vivem em Portugal, mas que são a única coisa disponível para vender em cartazes eleitorais. E quando é preciso um nome, um símbolo, uma referência para os tempos que correm, as hordas de afectos e de desafectos, enquanto tratam da vidinha, só sabem papaguear “Soares” ou “Cavaco”. Ditosa pátria que tais filhos alberga.

Jornal de Notícias - 1 de Setembro 2005