setembro 08, 2005

Vida portuguesa

O que acontece com os incêndios, acontece com os livros escolares só se fala do assunto quando chega a altura das queixinhas. Isso acontece no início do ano lectivo e, na verdade, como sabem os professores (e, provavelmente, não sabem os pais), devia falar-se do assunto logo em Março. Frequento bastante os livros escolares. Não partilho da opinião de que são deficientes e os seus autores negligentes (alguns são bons). Na maior parte dos casos limitam-se a interpretar programas que também podem ser absurdos, inadequados ou apenas improváveis. Além do problema do preço há outros, evidentemente: a sua qualidade (aspectos científicos e ortografia incluídos), a homologação ministerial, o sistema que leva editoras a apostar no escuro e a ter de rentabilizar o investimento, a "angariação de clientes", aspectos pedagógicos relevantes (como, por exemplo, a obrigação de os alunos escreverem nos manuais - o que, além do mais, os inutiliza para anos futuros), aspectos técnicos nada despiciendos (já alguém pensou que os livros são tão caros porque têm aquele aspecto gráfico, aquele papel pesado e outras manigâncias provavelmente desnecessárias?). Por exemplo.

2. Grandes e pequenos comentadores, dirigentes políticos e jornalistas avulsos descobriram recentemente duas coisas que a culpa do furacão Katrina é do "sr. Bush" e que na América próspera existe pobreza em graus dramáticos. A primeira das conclusões não tem nenhuma má-fé associada, como se sabe - depende apenas da indigência mental e do carácter obtuso dos intervenientes; a segunda é resultado de má-fé, sim - a miséria, o desemprego, a pobreza nunca foram escondidos da América. Inveja, má-formação e cretinice foram servidas em doses substanciais. Ninguém resiste a uma boa cerimónia fúnebre nos EUA.

3. O dr. Marques Mendes acha que a compra de uma parte do capital da TVI por espanhóis é um crime de lesa-cultura. Erro de perspectiva. O dirigente da Oposição podia perguntar-se por que razão houve tantos obstáculos por parte da Alta Autoridade à venda do grupo de media da PT a Joaquim Oliveira. Mas não pode inventar esse "argumento espanhol" por ter medo de ver os apresentadores da TVI a dançar flamenco.

4. Parece que o presidente da Câmara de Castanheira de Pêra explicou que gasta uns bons milhares de euros por ano em prevenção de incêndios e em vigilância das suas florestas. Isso não dá votos, mas o seu concelho não foi fustigado como os outros. Feitas as contas, deve ser homenageado e o exemplo retido. Já quanto ao Estado, em geral, viu arder 10% das suas árvores enquanto desviava as atenções e se notam os rumores pedinchistas da indústria dos incêndios reivindicando mais gastos e mais atenções. Gastos e atenções dão votos.

5. Boa parte dos comentadores entreteve-se a discutir sobre se o discurso de Mário Soares foi genial, excelente, bom ou "conforme o esperado", como se a Pátria estivesse desesperada, aguardando a salvação. Porém, inesperadamente, o discurso de Sócrates no Porto foi fustigado. Se alguém tem dúvidas sobre quem vai marcar a agenda política, está aí o quadro desenhado. Sócrates vai ser desvalorizado com o aparecimento de Soares. O ex-presidente por várias vezes tratou de identificar o deserto à sua volta. Sócrates já fez parte dele (as declarações de Soares foram claras) como um elemento desprezível.

Jornal de Notícias - 8 de Setembro 2005